sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

A EPOPEIA DO SEISCENTOS E SETENTA E UM

...Ali iam os dois naquela pasmaceira, o colega antigo mascarando o aspecto trôpego e alcoolizado com um ar severo e no seu entender respeitável, observando tudo e não dando conta de nada, e Serôdio, limitando-se a seguir o colega. Subitamente deu-se o choque. O antigo policia, olhando para a profundidade da rua que tão profissionalmente patrulhava, subitamente se modificou. Empertigando-se, pôs-se em posição de sentido, e com a mão direita, flácida, encostada à pala do boné cinzento, efectuou uma continência mole, sem dinamismo nem classe, enquanto que ao mesmo tempo gritava em altos berros:
-         Meu comissário principal, dá-me licença?
-         Avance seiscentos e setenta e um.
E o seiscentos e setenta e um, em passo de marcha, pelo passeio, abria caminho em direcção ao tal comissário principal, que como Serôdio mais tarde veio a saber, era um oficial rondante.
O seu colega seiscentos e setenta e um avançou pelo passeio cerca de cinquenta metros, e chegando próximo do oficial de ronda estacou o passo dizendo em altos berros:
-         Serviço sem novidade.

Serôdio, desgraçada e atabalhoadamente, seguiu o seu colega sem perceber o que se estava a passar. Tentando enfiar-se o mais que podia pelo boné dentro, percorreu aqueles cinquenta metros a morrer de vergonha. Em redor da cena, as pessoas passavam exibindo nos rostos sorrisos de troça e abanando as cabeças. Serôdio lá teve de apresentar ao tal comissário rondante a sua caderneta de controle. Depois de mais algumas encenações grotescas, o homem lá seguiu rua acima, enquanto Serôdio, acabrunhado, voltava a desfrutar da cálida e serena companhia do seiscentos e setenta e um. O comissário e o seiscentos e tal, de tão cavernosos e embrutecidos serem, nem sequer repararam que haviam proporcionado um hilariante e gratuito número de circo. Bem pelo contrário, nas suas cabeças bem fornecidas de osso, existia a convicção de que a população ficara agradecida por aquele solene e singelo momento de entrega ao serviço público...(em continuação, ex. XXXVI)
in Filhos Pobres da Revolta
Março/2003

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