domingo, 22 de julho de 2018

EM ALFEIZERÃO UMA CAIXA DE SURPRESAS


A Teresa, uma simpática senhora de meia-idade, que na medida do possível ajudava o padre José Soares, cozinhara para aquele almoço um suculento arroz pardo. Regado com bom vinho tinto, o almoço estava divinal, ajudando assim a que a frigidez, que a princípio existira entre os dois homens, acabasse por desaparecer.
- Aqui nesta sala, muitas vezes almoçou comigo o morgado Vitorino- começou por dizer o padre José Soares.
- O morgado Vitorino, dono da herdade que o senhor Barreto Raposo comprou - acrescentou Américo Afonso.
- Dono da herdade que o Barreto Raposo ocupa- corrigiu o padre- parecem dizer os factos que a comprou, mas eu recuso-me a acreditar nisso.
- E porquê?
- Porque fui eu que eduquei o Vitorino. Eu era o seu conselheiro. Ele não tinha intenção de vender a herdade porque ela era a sua vida. Mas mesmo que tivesse intenção de o fazer, tinha-me transmitido essa vontade. Essa venda, essa transmissão de propriedade, foi forjada.
- Eu concordo consigo senhor padre - disse o advogado - só numa situação de efectiva instabilidade, como foi a república substituir a monarquia, é que esta venda pôde ter lugar, através de um simples documento. Eu trago-o aqui copiado.
- Não me diga! Conseguiu isso?
- Fui na qualidade de advogado, tutor do pequeno Carlos.
- Esse é um outro assunto delicado - disse o padre José Soares.
- Qual? - perguntou Américo Afonso.
- O nome do pequeno. Ele não se chama Carlos Avilar. O seu nome é Leandro Vital de Lourena Fernandes.
- Como? Leandro? Esta história é uma caixa de surpresas.
- E ainda não acabaram senhor doutor. Se realmente defende os interesses do Leandro, não pode ficar só por aí. Tem também de defender os interesses do irmão.
- Como assim? - perguntou Américo Afonso, com semblante de grande confusão.
- O morgado Vitorino tinha dois filhos, o Leandro e o Helder. São gémeos. Como pode calcular, aqui em Alfeizerão, vive um rapazinho com treze anos de idade, que deve ser uma réplica perfeita do Leandro. E digo deve, porque eu não vejo o Leandro há doze anos. O senhor doutor, se quiser, poderá conhecer o Helder.
- Olhe senhor padre, eu já não sei que lhe diga. A minha Luísa quando souber disto tudo, não sei como reagirá. Será melhor nem lhe dizer nada agora. Está para breve o nascimento do nosso filho. Mas diga-me senhor padre, o senhor Barreto Raposo sabe alguma coisa sobre a existência das duas crianças?
- Não, este é um segredo que Alfeizerão guardou muito bem guardado. Eu e a Lucinda...
- Quem é a Lucinda?
- A Lucinda está para o Helder como a D. Luísa está para o Leandro.
- Percebo. E a mãe dos pequenos quem é?
- A mãe dos gémeos foi a saudosa Marta. Morreu ao dá-los à luz.
- Meu Deus, os miúdos estavam predestinados ao infortúnio- disse Américo numa reflexão sentida - o senhor padre falava na Lucinda... (em continuação, ex. LIII)

in Quando Um Anjo Peca

Março/1998

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