segunda-feira, 29 de julho de 2019

OS ANJOS, POR REGRA, NÃO COSTUMAM TER IDENTIDADE


- Vitorino de Lourenço Fernando- releu o advogado- tem semelhanças.

- Decerto que ao escrever um falso nome, o Vitorino arriscou. O outro talvez não soubesse o nome certo do morgado ou este testou a sua capacidade de leitura. Depois vêm as delimitações que estão trocadas com os respectivos pontos cardeais.

- Sabe senhor padre, em tribunal este documento pode facilmente ser destituído de veracidade. Afinal, nunca um Vitorino de Lourenço Fernando foi proprietário da herdade Vila de Ló. Como tal nunca poderia vender o que nunca foi seu. E não nos podemos esquecer da possível relação existente entre a data e a base do armário.

- Eu estou cheio de esperança e expectativa. Neste momento quase que consigo sentir a proximidade de uma Alfeizerão ainda monárquica. Mas toda esta esperança se me aperta no peito numa manifestação de amargura, ao sentir que o Vitorino morreu a pedir-me ajuda e a desistir de Deus.

- Diz isso por causa da última frase do texto- “sem fé”?

- Exactamente.

- Ora senhor padre, eu que não conheci o senhor morgado, estou a detectar a subtileza. O texto não começa com a frase - “sob minha fé?” Pois se ele escreveu “sem fé”, é o mesmo que dizer que a venda da herdade é uma mentira.

- Ò homem, que a tristeza me atrofiou a inteligência. Mas é isso mesmo. Deus lhe pague por esta misericórdia que me acabou de fazer. Até respiro melhor. Com a ajuda que Deus enviou de dois lados, estou certo de que a identidade perdida dos Lourena Fernandes voltará a florescer aqui, na sua terra.

- A dupla ajuda divina! Eu... e o anjo- disse Américo ironicamente.

- Sim, o senhor doutor e um anjo.

- Os anjos, por regra, não costumam ter identidade- disse Américo ironicamente.

- E este não foge à regra. Mas, almoçados que estamos, não quererá o senhor doutor visitar a minha humilde capela, ler o assento de baptismo dos dois gémeos? Penso que lá está a prova em como eles são filhos do morgado Vitorino.

- Pois então não percamos tempo - respondeu Américo - ainda hoje tenho doze léguas para percorrer e um rapazinho para conhecer. Estou deveras curioso.

         E os dois homens atravessaram aquele início de tarde de Dezembro, onde a esperança renascia sob um tépido sorriso do sol…(em continuação,ex. LVI)

in Quando Um Anjo Peca

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