domingo, 16 de fevereiro de 2020

UM NOIVO PARA MARIA CLARA...COISAS SEM NEXO, DECERTO


Nos dias que se seguiram à visita do inglês Jack Horn a Malhal de Sula, andei pela região, exercendo a minha actividade clínica e ao mesmo tempo conversando com as pessoas sobre o que acontecera no Luso, nas terras do Conde de Cértima. Eu sabia que se algo corresse pela boca do povo, é porque alguma verdade havia no que corria. E de duas coisas eu fiquei ciente: não corriam boatos sobre o nome do assassino, embora tivesse ouvido muitas conjecturas, nenhuma que incluísse o nome de Pedro Corga, o que queria dizer que o inglês se mantinha calado, o que não facilitava nada a minha tarefa; e não corria que o regedor tivesse ainda movido uma palha, no propósito de tentar descobrir alguma pista que o levasse à identidade do assassino.

         O meu instinto não permitia que eu fosse a casa de D. Rodrigo Corga, mas ele era meu doente e eu tinha de continuar o meu trabalho.

         Lá fiz o meu domicílio.

         O Conde de Cértima recebeu-me sem grande entusiasmo. Depois de eu lhe ter aplicado uma nova porção do unguento contra o reumatismo, D. Rodrigo Corga disse-me:

- Senhor doutor, penso que por via deste meu mal não precisará o senhor de voltar cá a casa. Já me sinto bem. As suas mezinhas são boas. Resta-me fazer contas consigo e sempre que seja necessário lá o chamarei.

- Como Vossa Excelência entender. E desde já os meus agradecimentos pela confiança que Vossa Excelência demonstra pelos meus serviços.

- Está certo, está certo – disse o conde – espero que tão depressa não o tenha de chamar, até porque agora mal calharia já que estou próximo de arranjar casamento à minha filha. Finalmente! Já vai com trinta anos de idade.

- A senhora D. Maria Clara vai-se casar? – perguntei eu, com um sorriso que a mim próprio me pareceu muito desmaiado.

- Se Deus o permitir, será com o Visconde de Sá. É uma casa distinta de Aveiro.

- Folgo em saber essa notícia – voltei eu a falar, sentindo que as cordas vocais se me tolhiam.

         Depois o Conde de Cértima pagou o preço das minhas consultas. E quando me preparava para sair, perguntei-lhe:

- Excelência, notícias sobre o nome do matador, não há nenhuma?

- Não, senhor doutor. Que quer? Se o descobridor pouco sabe do seu ofício, pouco ou nada se descobre. E no fundo, aos mortos tanto se lhes dá que se descubra como não. Debaixo da terra ninguém os tira.

- Mas, Excelência, anda um criminoso a monte!

- Vá dizer isso ao regedor. Ainda aqui não pôs os pés e já lá vão não sei quantos dias.

- E como está o senhor Francisco Carvalho?

- Como há-de estar?! Lá lhe dei uns cruzados para tornar mais pequena a dor e o animar, que tanoeiro como ele não há outro por aqui.

         Achei o conde com muita falta de piedade, contrariamente ao que tinha presenciado no dia em que os mortos haviam sido encontrados. Suscitou-me aquela atitude algumas dúvidas, coisas sem nexo, decerto…(em continuação, ex. XXXII)
in Alma de Liberal

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