sexta-feira, 1 de agosto de 2008

NA VIELA

fotografia gentilmente cedida pelo António Henriques, amigo de muitas e boas horas.


Durante muitos anos vivi na viela. Se ás ruas das cidades chamamos artérias, por analogia aquela não passava de um vaso sanguíneo. Estreita, feia, definitivamente não me seduzia. De um e outro lado do vaso, dispunham-se as casitas, pequenas, comprimidas, quase se tocando. Quantas vezes, as vizinhas, à janela, tagarelavam de um e outro lado da viela, em voz baixa, sobre as questões sociais do dia, que ao vaso diziam respeito. Todos nos conhecíamos. Era quase um gueto, embutido na grande cidade. Conhecermo-nos bem uns aos outros tinha as suas desvantagens, pois não era possível existir grande privacidade, mas também se encontravam vantagens, pois nós, os da viela, éramos uma família.

Não me seduzia, mas era a minha casa. E foi-o durante muitos anos. Foi na viela que nasci e cresci. Não tinha espaço para jogar à bola, nem chão para o prego, pois no empedrado nem o mais hábil conseguia espetá-lo. À carica também não se podia jogar, pois em cima das pedras era impossível impulsionar as latichas de forma correcta, sem que fizessem ricochete e se desviassem da rota pretendida. Para brincar, nós, os garotos da viela, tínhamos de ir para um descampado existente ali perto. Com os anos, o chão do vaso deixou de me criar problemas, pois os meus interesses passaram a ser outros, que transpunham a fronteira do meu exíguo espaço.

Arranjei um emprego numa tipografia. Alcancei a minha independência económica, muito embora parte da minha féria a entregasse à mãe.

Passaram-se quatro anos. Na tipografia ganhara o meu espaço. Devagarinho, ao ritmo da vida, encontrei-me com a categoria profissional de tipógrafo linótopista. Trabalhava com um linótipo, máquina enorme, que ao mesmo tempo que derretia barras de chumbo, transformava o chumbo derretido em letras, as letras que eu ia escrevendo no enorme teclado. Ganhara o meu lugar na tipografia. Tornara-me necessário.

E foi por essa altura que um dia vi um miúdo na viela, encostado à parede velha de umas das casas. Era desconhecido. Tinha um olhar triste. Vendo que eu o observava, desviou o olhar para o chão, envergonhado, querendo passar despercebido. Algo não estava bem com aquele cachopo. Meti conversa com ele. Tinha doze anos, já fizera a quarta classe, mas ficara órfão de pai recentemente. Começava o miúdo a conhecer o rosto da miséria. Como podia eu ir para a minha casa sossegado, sabendo da existência daquele drama, que fora encalhar na viela, sem que nada fizesse para o minimizar, que o destino fizera com que se atravessasse no meu caminho? Nesse mesmo dia falei com o meu patrão. Era um bom homem, o senhor Agostinho. E imediatamente se disponibilizou a arranjar lugar para o miúdo. Foi para mim uma grande felicidade ver, no momento em que lhe dei a notícia, observar a esperança a tomar conta daquele olhar até ali tão triste e desalentado. Se a tristeza tem de ter um lugar para existir, não pode ser, certamente, no olhar de uma criança.

Dois anos passaram e era um regalo ver o rapazito, muito dedicado, progredir no conhecimento dos assuntos relacionados com a profissão de tipógrafo.

Entretanto chegou o meu tempo de cumprir o serviço militar. Mobilizado para a Guiné, de lá regressei, fazendo parte da lista dos deficientes das Forças Armadas. Uma granada roubara-me o meu braço direito. Cheguei a Portugal meses depois do 25 de Abril. Zangado com a vida e com a minha sociedade, que não me acolhera com o respeito que eu sentia merecer, não quis regressar à minha cidade. Com a minha deficiência, originada na estúpida guerra, não havia lugar para mim na tipografia que um dia eu amei.

Passei a viver da mísera pensão que o meu país me ofereceu, como recompensa por lhe ter entregue a minha juventude, e de biscates que aqui e ali fui fazendo, e que as minhas limitações me permitiam fazer.

Muitos anos se passaram. Um dia, não há muito tempo, já perto dos sessenta, inscrevi-me numa excursão patrocinada por uma colectividade onde passava os meus dias. E inscrevi-me, porque essa excursão tinha como destino uma visita à minha cidade.

Tudo mudara. Praticamente que a não reconhecia. Os excursionistas tiveram três horas de liberdade, para irem onde bem entendessem. E eu, claro, enquanto os outros se deliciavam em visitar este ou aquele local, eu fui em busca da minha antiga viela. Deus meu, como tão depressa a encontrei. Mas daquele vaso, que foi a minha casa trinta e tal anos antes, apenas duas coisas não tinham mudado: a sua pouca largura e o empedrado do chão. Tudo o resto era diferente. Casas bonitas, muito comércio. Deliciei-me a pisar aquelas pedras, as mesmas que uma vez pisara, quando era jovem. A dado momento da minha visita imobilizei-me. À minha frente revelava-se uma bonita montra, a montra de uma tipografia. Tudo tão moderno, tão belo. E lá estava o meu velhinho linótipo, agora reduzido a uma belíssima maqueta. Fiquei-me ali a apreciá-la, recordando momentos tão antigos. Foi quando fui acordado por uma voz, que me dizia:

- é bonita essa maqueta, não é? Também a adoro.

Eu olhei para a pessoa que me dirigia a palavra. Era um senhor aparentando os seus quarenta e tal anos de idade.

- É sim, é muito bonito aquele pequenino linótipo.

- Ah, mas o senhor sabe que a maqueta é uma representação de um linótipo.

- Claro que sei. Há muito anos fui linótopista. E agora reparo que esta tipografia se chama «Agostinho». É engraçado, porque o dono da tipografia onde trabalhei se chamava Agostinho.

- E se não for indiscrição, onde se situava essa tipografia?- perguntou-me o senhor.

- Aqui na cidade.

- Então o senhor já morou nesta cidade?

- Já- respondi eu, com profunda amargura.

- E, se não for indiscrição da minha parte, onde morava?

- Onde? Aqui mesmo, nesta viela.

Senti que o senhor me colocava uma mão no ombro. Olhei para ele. Tinha os olhos marejados de lágrimas.

- Não me conhece?- perguntou-me ele, com a voz embargada.

- Não- respondi eu, confuso.

- Conhece sim! Eu sou o rapazito que o senhor levou pela mão, para a tipografia do senhor Agostinho. Ele já morreu há bastantes anos. Agora eu sou o dono da tipografia. Por onde tem andado? Que foi que a Guiné lhe fez?

- O que vê!

- Meu querido amigo, hoje regressou a casa. Venha, entre na sua tipografia.

Entrei.

A esperança que há muitos anos eu vira surgir no olhar daquele miúdo, sentia-a surgir agora no meu.

E a camionete da excursão, regressou ao seu local de origem, com um passageiro a menos.

Se aquele miúdo alguma coisa me devia, acabava de saldar a sua dívida, trinta e tal anos depois.

A minha vida recuperou a felicidade perdida, no mesmo local em que começara: na viela!

4 comentários:

Clara Gomes disse...

Também eu conheço essa viela!
Cada pedra desse empredado,sabe bem o que esse aprendiz de linótopista, gostaria de ter feito para que o amigo não tivesse ficado privado do seu precioso bem.
Para o seu Amigo,que agora vê com os olhos do espirito, isso basta!

Poeta do Penedo disse...

Obrigado por essas palavras Clara. Ao lê-las, fiquei muito emocionado, porque as tuas palavras foram a voz do pobre tipógrafo linótopista. As tuas palavras deram-me a certeza de que a Viela chegou onde queria que chegasse.
Através de mim, ele agora te agradece, por, para mim, seres quem és. E também por seres quem és...para ele.
Bem hajas.

Poeta do Penedo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Obrigada!
Pela visita,pelo carinho e por me permitir estar entre os seus preferidos.
Outra vez, ternamente: Obrigada.
OBS.: Gostaria de ler seus poemas.