segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

NA BEIRA MAR, ENTRE IRMÃOS

- ...Esperem por mim seus sacanas- berrava Narciso Conde, enquanto a correr se afastava da casa Lobito de Benguela- isso è que vocês são uns amigos.
- Ah, nós è que somos maus amigos!!- retorquia um dos outros três rapazes- quase nos meteste numa grande trapalhada. Asseguraste-nos que não ia haver qualquer perigo na casa da tua tia, e afinal tínhamos uma comissão de recepção.
- E vocês não viram porquê? Como podia eu adivinhar que o animal do Serôdio estava lá em casa?
- E ele estava lá em casa a fazer o quê?
- È verdade!! Ele estava lá em casa a fazer o quê?- questionava-se Narciso- ele não conhece a velha, nunca esteve naquela casa. Sabem de uma coisa? Aquele gajo estava à nossa espera. Ele sabia que nós íamos ali esta noite.
- Mas sabia como? Só se o tipo for bruxo.
- Isso eu não sei- dizia Narciso- mas que ele estava ali por nossa causa, disso não tenho dúvidas. Aquele tipo vai-me pagar isto bem pago.
- Será que nos conheceram?
- È possível, mas nada podem provar- respondeu Narciso cheio de confiança- fiquem calmos. Temos de ter a cabeça fria. Eu irei de mansinho sondar a velha e o tição, para ver se desconfiam de alguma coisa.
E os quatro seguiram cada um para sua casa, tendo-se livrado previamente dos garruços de lã preta, que abandonaram num contentor do lixo.
No dia seguinte, depois do almoço, D. Silvina dirigiu-se a casa do seu irmão. Não estaria nas melhores condições psíquicas para ter uma conversa do género daquela que iria desenvolver, mas não podia deixar cair em esquecimento o que lhe acontecera na noite anterior. E o que acontecera fora muito grave! Não tivesse sido a oportuna intervenção de Serôdio, talvez a sua vida já não existisse. Como o rapaz ficara com a cara. Estava inchada e na zona da vista esquerda tinha uma enorme nódoa de um negro muito feio. Fora uma noite esgotante. Teria agora de ter muito tacto para conversar com o seu irmão. Sim, porque não se acusa um filho de alguém de uma coisa tão má como aquela, assim de ânimo leve, sem provas, mesmo a acusadora sendo uma tia.
O seu irmão, Carlos Conde, era dois anos mais novo do que ela. Formara-se em engenharia. O pai dos dois fora um benemérito médico aveirense. Numa educação respeitando os princípios cristãos e as leis da moralidade, criou os seus dois filhos. Ao rapaz deu um curso de engenharia e à rapariga deu um nome respeitável, nome esse que veio a atrair a atenção de um jovem alferes. Por isso mesmo, D. Silvina contava com o discernimento do irmão para poder resolver aquele assunto tão delicado.
Previamente ligara para o seu irmão, certificando-se de que ele estaria em casa.
Carlos Conde vivia numa tradicional casa ribeirinha, na zona da beira mar plantada, virada para um braço da ria que passava num canal a que puseram o nome de S. Roque. Daquela casa se já havia assistido ao esforço de centenas e centenas de marnotos, na árdua faina do sal. Se a casa de D. Silvina evocava os tempos da colonização portuguesa em África, a casa de Carlos Conde recordava o tempo em que a ria fora o coração de Aveiro, exibindo painéis de azulejos onde se representavam barcos moliceiros cortando as águas da ria, uns carregados de montes de escuro moliço e outros a abarrotar com a alvura de montes de sal.
Nem foi preciso fazer-se anunciar. O irmão aguardava-a ao topo de uma pequena escadaria.
- Então Silvina, o teu tom de voz ao telefone deixou-me preocupado- dizia Carlos Conde, um homem quase a entrar nos cinquenta, de cabelo e pêra grisalhos.
- Não è para menos Carlos, não è para menos- dizia D. Silvina, enquanto saía do carro conduzido pelo criado negro- ainda há quem se aproveite do facto de uma mulher ser viúva.
- Que me dizes? Fizeram-te alguma coisa?- perguntava o irmão de D. Silvina, enquanto a acompanhava.
Depois de comodamente instalados numa sala, onde o primordial motivo de decoração era a faina da ria, Carlos Conde disse:
- Mas então irmã, que te aconteceu?
- Gostaria de ter esta conversa a sós contigo.
- Podes falar Silvina, a minha mulher e os miúdos saíram e a empregada está a estender roupa no quintal.
- Pois muito bem, meu querido irmão, o que te tenho para dizer não è nada simpático. Também não tenho provas, mas não podia ficar a viver nesta situação, sujeita sabe Deus a quê.
- Silvina, quando te pões com essas evasivas, è porque o caso è mesmo sério.
- Sim è sério. Eu podia estar morta neste momento...
- Morta?- questionou o engenheiro Carlos Conde- morta como?
- Morta como? Sem vida, como è que querias que eu estivesse morta a não ser dessa maneira?
- Não è isso que eu quero dizer. Correste mesmo perigo de vida?
- Sim Carlos, ontem pelas duas horas da manhã a minha casa foi assaltada por quatro meliantes.
- Que me dizes?
- È verdade. Um deles atacou-me com uma daquelas lanças que o Raul trouxe de Angola. Não fosse a pronta intervenção de um rapaz que lá estava em casa...
- Tu tinhas um rapaz em tua casa às duas da manhã?
- A história começa nesse rapaz. Durante a tarde de ontem esse moço chamado Serôdio veio-me bater à porta, para me alertar de que eu à noite iria ser assaltada.
- Essa agora!! E foste mesmo- dizia o engenheiro Carlos Conde.
- E fui mesmo! Mas o mais grave ainda não te disse. Esse rapaz, que è colega de turma do teu filho Narciso, foi acusá-lo de que seria ele o cérebro do assalto.
O irmão de D. Silvina ficou uns momentos em silêncio. Depois disse calmamente:
- Tu estás a acusar o meu filho de ser um assaltante?
- Que te hei-de eu dizer irmão? Aquele rapaz veio denunciar uma situação que acabou por acontecer. Os assaltantes foram direitinhos ao quadro da parede que esconde o cofre. Retiraram o quadro da parede e já se preparavam para abrir o cofre, quando foram descobertos. Que te hei-de dizer?
- Tens provas da acusação que estás a fazer?
- Não, não tenho, porque os quatro assaltantes estavam encapuçados e nunca falaram.
- E esse tal... como se chama...?
- Serôdio?
- Sim, esse tal Serôdio, estará ele por detrás desse assalto?
- Depois de em voo se ter lançado contra o indivíduo que para mim corria com a lança em riste, e depois de por esse mesmo bandido ter sido agredido a pontapé no peito e no rosto, acho muito difícil.
- Silvina, faz-me compreender a razão pela qual acreditas que o meu filho Narciso seria capaz de te fazer tal barbaridade.
- Talvez o modo desprezível com que me olha. Sinto nele que por mim não nutre qualquer sentimento.
- Eu estou muito magoado contigo Silvina.
- Meu irmão, Deus me perdoe se estou a cometer uma injustiça. No entanto, vivendo todas as minhas incertezas e pavores, aqui me tens a dizer-te tudo isto e não na esquadra de policia. Eu não poderia fazer isso ao meu querido irmão, nem mesmo se tivesse a certeza da presença do Narciso ontem em minha casa.
- E esse Serôdio, porque enxovalhou ele o nome do meu filho?
- Porque disse ter descoberto o plano, e porque estava farto da conduta do Narciso para com os colegas de turma e ele próprio.
- A conduta? Que conduta?
- Olha Carlos, não sei... vai lá ao liceu e informa-te. Eu fui assaltada, quase agredida, tive de ir com o rapaz ao hospital, foi uma noite para esquecer. Estou exausta. Não tenho provas para acusar o teu filho, mas... disse-te o que sinto. Se ele não tiver culpa, eu a ti e a ele pedirei desculpas. Boa tarde.
E D. Silvina abandonou a casa do irmão, mais angustiada do que entrara. Ele ficara revoltado com ela. Era natural. Nenhum pai gosta de ouvir más palavras em relação a um filho. Mas, infelizmente, ela sentia que Serôdio tinha razão na acusação que fizera...(em continuação- pág. 38- ex. XI)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

9 comentários:

Teresa Fidalgo disse...

Poeta do Penedo,

Pois é... No melhor pano cai a nódoa!

e

O mais cego é aquele que não quer ver!


(enquanto estava a ler o texto, lembrei-me destes dois provérbios, acho que vão mesmo a calhar :))

Saudações

Poeta do Penedo disse...

Cara Teresa Fidalgo

Assim é. Deve ser extremamente doloroso para um pai, confrontar-se com a má índole de um filho por quem apenas se espera nobreza de carácter.
Briosas saudações.

MM disse...

Caro Poeta do Penedo,

Registo com agrado os dois textos relativos a este assalto de D.Silvina.

Permita-me que lhe revele que é notório em si um especial apreço pelos diálogos.

Haverá alguma explicação da sua parte para semelhante predileção?

Com amizade,

Marcelo Melo
www.3vial.blogspot.com

Poeta do Penedo disse...

Meu caro Marcelo Melo
acho a comunicação entre as pessoas fundamental. Por outro lado a minha formação teatral, que já tem mais de trinta anos, mas mantém-se viva, impele-me ao diálogo na escrita.
Com amizade.

Teresa Fidalgo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Teresa Fidalgo disse...

Poeta do Penedo,

Claro que há-de ser um desgosto de morte sabermos que o/os nosso/s filho/s não é quem nós gostaríamos que fosse. Saber que é um criminoso. Mas não me parece que a melhor atitude seja meter a cabeça na areia. Muito menos ficar "zangado" com quem nos vem avisar desse mal.
Parece-me que seria mais sensato o Carlos ouvir a irmã com mais atenção; com aquelas palavras confrontar o filho; averiguar donde estaria a razão; e depois, agir em conformidade...


Saudações

Poeta do Penedo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Poeta do Penedo disse...

Cara Teresa Fidalgo
O Carlos reagiu assim, movido pela esperança de que a acusação da irmã fosse uma difamação. Mas parece-me que a consideração que tem por ela, irá forçá-lo a confrontar o filho com a acusação da tia, e assim tirar a limpo toda aquela história tão estranha. Parece-me...
Briosas saudações

Teresa Fidalgo disse...

Poeta do Penedo,

Quanto ao comentário eliminado... Mea culpa, mea culpa! Eu sem querer eliminei o meu comentário, mas depois voltei a repetí-lo.

Quanto ao resto, fico mais descansada... vou esperar então pela continuação da história...

Saudações