sábado, 25 de agosto de 2012

DO SEU QUARTO, PARA O FUTURO


...Da janela do seu quarto, Serôdio contemplava laconicamente a rua onde morava, uma pequena viela que não lhe proporcionava grandes motivos de interesse. Por ali passavam poucas pessoas, o movimento era mínimo. Mas fora naquela pequena casa que crescera. Era a partir dali que iria dar o arranque para a sua vida, um futuro que já fora mais promissor. Alguém forçara o seu destino a mudar de rumo. O curso de medicina era agora um objectivo adiado, senão mesmo sem esperança de ser alcançado. As lesões de que havia sido vítima eram afinal mais graves do que se supusera. Tinha falta de equilíbrio, arrastava a perna direita, não tinha coordenação de movimentos com a mão direita, pelo que o acto de escrever era de momento algo impossível de fazer. Mas o mais grave de tudo residia no facto de não conseguir reter a informação  que recebia através da leitura. Notara que ao ler um livro se encontrava permanentemente perdido no enredo, pois conforme ia avançando na narração, ia ao mesmo tempo esquecendo o que já lera. Se não conseguia assimilar a leitura de entretenimento, o que não aconteceria com a leitura técnica! Teria com certeza de recorrer aos bons serviços de um neurologista e fazer ginástica de recuperação. E toda essa recuperação levaria quanto tempo? Sim, porque ele não admitia que houvesse outro resultado que não fosse o ficar senhor de todas as suas faculdades. Mas isso poderia levar meses... anos. E nem o tempo nem o seu relógio biológico esperariam por ele.
Havia uma semana que saíra do hospital. Sentia-se bem na sua pequena casa. Como filho único que era, os pais tratavam-no com um carinho muito especial, pois ele era um tesouro inestimável que por muito pouco eles não perderam. Já na sua casa, D. Silvina o fora visitar. Levara também o Armando. As lágrimas que vira aflorarem aos olhos do criado negro, tocaram-lhe fundo no coração, pois demonstraram-lhe que naquele homem, nascido numa África distante, tinha um amigo dedicado. D. Silvina oferecera-lhe um bom livro, para atenuar os momentos de tédio. E foi ao ler esse livro que Serôdio se apercebeu daquela deficiência. Ainda não dissera nada aos pais, mas tinha de o fazer.
Os seus pensamentos, que na pacatez do seu quarto iam e vinham, como únicos companheiros de um recolhimento forçado, foram interrompidos pela sua mãe, D. Amélia, que lhe trazia o lanche, composto e apetecível num tabuleiro bem recheado.
-         Em que pensavas filho?- perguntou a mãe enquanto poisava o tabuleiro do lanche numa pequena mesa.
-         Pensava se algum dia conseguirei vir a ser aquilo que quero.
-         E não hás-de conseguir porquê? Apenas tiveste uma pequena paragem no teu percurso. Faz de conta que chumbaste um ano.
-         Mas não chumbei mãe. Sou um aluno que merece entrar na faculdade. Revolta-me saber que por vontade de alguém, eu fui impossibilitado de lá entrar. E mais revoltado fico por não me lembrar quem foi esse ordinário. A policia não tem nenhuma pista?
-         Não filho. Falámos com um chefe, ou um comissário ou lá o que è, mas... disse-nos que iam investigar. Não sei se investigaram ou não, o que è certo è que até agora não obtivemos qualquer resposta. Mas não admira, pois olhando para aqueles policias ficamos com a convicção de que com aquele tipo de homens, a investigação não vai dar a lado nenhum.
-         Bem mãe, não vamos agora culpar quem não tem culpa nenhuma. Mais do que saber o nome de quem me pôs neste estado, interessa-me agora è curar-me. Eu estou pior do que aquilo que se possa pensar.
-         Estás pior filho? Que queres dizer?
-         Não consigo memorizar o que leio.
-         Não percebo Serôdio- exclamou D. Amélia.
-         Mãe, já li bastantes páginas do livro que a D. Silvina me deu e se me perguntares qual o seu conteúdo, eu não te sei responder. È como se nunca o tivesse aberto. Neste estado, como posso eu continuar a estudar?
-         O teu pai já sabe disso?
-         Não. Eu tenho-me andado a experimentar, mas agora tenho a certeza.
-         Temos de ir ao médico.
-         Deus queira que o meu problema tenha resolução.
-         Com a ajuda de Deus, há-de ter filho...(em continuação, pág 59, ex. XVIII)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003

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