sexta-feira, 10 de maio de 2013

ENFRENTANDO A ESTÚPIDA PREPOTÊNCIA


...O mouro dirigia-se pé-ante-pé em direcção à porta, na esperança de poder ouvir algo que lhe desvendasse a origem daquelas gargalhadas sem sentido. De repente, foi surpreendido pelo aparecimento súbito da mulherzinha de preto. Saía de casa. Era Lucinda e dizia:
- Por Deus o meu menino está vivo. O meu Daniel tem de saber. Há doze an...
Lucinda deu de caras com o mouro, que muito quieto a observava a cerca de meia dúzia de metros.
- Que temos aqui? - perguntou o mouro - uma mulher sempre tão deslavada, tão “insonsa", e de repente pareces mais nova! Posso saber de onde te vem essa alegria?
- Sua coisa ruim - respondeu Lucinda com desprezo – vai-te daqui belzebu.
- Olha mulher, se o teu "home” não te sabe pôr a direito, eu ponho - e ao dizer isto avançou para Lucinda, quando de dentro da casa surgiu também o padre José Soares.
- Que vais tu fazer homem? - perguntou o padre. O mouro deteve o passo e disse:
- O padre não a ouviu falar?
- Ouvi e também te ouvi agora a ti. Não há um pouco mais de respeito por mim? O padre, o padre! Não podias dobrar um pouco a língua?
- Não me venha com " seremõezes", que eu não sou de missas. Esta estupor mangou de mim e isso ninguém faz.
- Ela não mangou de ti. Apenas disse que não gosta de ti.
- Não gosta de mim? Alguma vez lhe fiz ma1?
- Nunca se sabe. Quando um cristão não teme a Deus, os outros cristãos têm desconfianças dele.
- E vocemecê também não gosta de mim?
- Sabes, um bom pastor tem de se preocupar com as ovelhas do seu rebanho. Se se preocupa com as ovelhas de outros rebanhos com certeza que não dará a atenção que deveria dar às suas.
- O padre deve andar com as ideias trocadas. Põe-se-me a falar de ovelhas e pastores. A que é que isso vem ao caso? Gosta de mim ou não?
- Se passares a ir à missa hei-de te ver com outros olhos.
- Já entendi. Pois fique-se lá com os seus santos. E tu fica a saber que havemos de conversar.
- E que tem vocemecê para conversar com a Lucinda? - perguntou uma voz vinda da retaguarda do mouro. Este virou-se. Os seus olhos frios faiscavam de cólera. Não estavam habituados a que o enfrentassem. Atrás de si encontrava-se o António Avilar.
- Olha, olha, hoje até ao zarolho se lhe desenrolou a língua. Eu não quero que ali o padre fique a pensar coisas ainda piores de mim. Mas estou com muita vontade em te ir a esse focinho. Já te esqueceste de que sou o capataz?
António Avilar muito serenamente respondeu:
- Não, mas vocemecê ouviu-me dizer que o não era?
- Então e o respeito que me deves? Se eu quiser desandas daqui enquanto o diabo esfrega um olho.
- Espera aí homem - interveio o padre José Soares - tu só o podes mandar embora se ele mostrar não ter capacidades para desenvolver o seu trabalho.
- Ó padre cale-se para aí que ninguém lhe pediu conselho. Já estou a ficar farto de o ouvir a arengar...
- Ouça cá seu capataz marroquino, não lhe admito que ofenda o senhor padre - disse António Avilar com a voz carregada de raiva e as mãos crispadas à volta do cabo da enxada que transportava.
- Ó zarolho dum raio, mas quem és tu para me falares assim? Racho-te ao meio não tarda.
- Cuidado senhor capataz, muito cuidado. Nem tudo o que se vê será o que parece.
         Enquanto proferia aquelas palavras de aviso, António Avilar levou a mão direita ao interior da jaqueta e com ela fez vários movimentos na base do abdómen, na zona por onde passava o cinto que lhe segurava as calças. O mouro seguiu com os olhos aquele movimento estranho da mão direita do seu oponente. As palavras com sabor a ameaça ainda lhe feriam os ouvidos. O ar determinado e sério de António Avilar fizera vacilar o mouro na sua estúpida convicção de que era o dono e senhor de toda aquela gente. Os dois homens, sem se movimentarem, fixavam-se, quais gladiadores em arena romana, tentando adivinhar os pontos fracos um do outro. António Avilar sabia que o maior ponto fraco do mouro era este estar convencido de que só tinha pontos fortes...(em continuação, pág. 109, ex. XXXVIII)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

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