sexta-feira, 19 de julho de 2013

A PERSPECTIVA DE UM FOSSO DESCOMUNAL

...-         È isso mesmo rapaz- retorquiu o pai de Serôdio- um homem enrascado è pior do que sei lá o quê!
-         Tu falas muito bem, mas o Serôdio está aqui está a acabar a tropa. E depois?
-         Depois- disse D. Silvina-  depois alguma coisa se há-de arranjar. Os amigos servem para as ocasiões e eu tenho a certeza de que ainda existirão amigos do meu marido, que a meu pedido poderão arranjar um emprego interessante para o Serôdio.
-         Eu agradeço a sua disponibilidade D. Silvina, mas com um pouco de sorte vou resolver o meu próprio problema- disse Serôdio convictamente, dando assim a entender que tinha encontrado uma solução. Por isso o pai perguntou-lhe:
-         Mas então tens alguma coisa em mente?
-         Sim pai, tenho. Vou concorrer à PSP!
-         Vais o quê?- perguntou a mãe de Serôdio, com uma expressão facial que demonstrava estar-se a sentir escandalizada.
-         Vou tentar entrar na Policia de Segurança Pública.
-         Ai meu Deus... Serôdio, não faças uma coisa dessas- dizia D. Amélia- tu mereces coisa bem melhor do que isso...
-         Mãe, è um emprego do Estado. Eu não estou em condições de ser esquisito.
-         Manuel, vê se tiras esta ideia da cabeça do teu filho- suplicava D. Amélia ao marido.
-         Sabes qual è o tipo de serviço na PSP e quais as pessoas que lá estão nos quadros, não sabes?- perguntou o senhor Manuel ao filho.
-         Sei pai!
-         Tu já és um homem, Serôdio. Pondera bem antes de te decidires, porque depois será tarde para te arrependeres- continuou o pai de Serôdio.
-         Qual è a tua opinião sobre a minha ida para a policia?
-         Não fico a saltar de alegria, tal como a tua mãe. O serviço que a policia desempenha não è nada simpático, e depois ver-te misturado com homens sem nenhuma formação, vai-me custar muito.
-         Mas pai, se a nossa sociedade está a evoluir, obrigatoriamente que a evolução há-de chegar à Policia de Segurança Pública.
-         Evolução? Com aqueles basbaques? Eu bem sei o que senti quando tive de ir à esquadra por causa do que te aconteceu- dizia D. Amélia- parecia que tinha entrado num antro de estupidez. Só via homens de aspecto rude, grosseiros, a olharem para nós. Aqueles serão incapazes de evoluir.
-         Esses talvez não evoluam, mas outros que virão a entrar, tal como o Serôdio...- disse por sua vez D. Silvina- eu apoio o Serôdio nesta sua decisão. A falta de emprego, hoje em dia, è muito grande. Isso fará com que os quadros da policia sejam preenchidos com pessoas mais capazes.
-         Para a admissão ao curso não tenho que ter grandes preocupações, pois apenas preciso de prestar provas físicas, já que estou isento das provas escritas.
-         E porquê- perguntou D. Amélia.
-         Porque tenho habilitações demasiado altas para o nível mínimo exigido, que è a quarta classe, como sabem.
-         És quase considerado um doutor- disse D. Silvina sorrindo.
-         Se realmente vier a fazer parte dos quadros da PSP, empenhar-me-ei para melhorar a imagem da corporação. Já que me vão pagar um ordenado, è o mínimo que posso fazer em retribuição.
-         Talvez tenhas razão. È possível que a policia evolua- disse o senhor Manuel.
-         Pai, alguém tem de fazer aquele trabalho. A segurança è indispensável à estabilidade de qualquer país. Um dia, o nosso governo terá de apostar no serviço e nos homens da Policia de Segurança Pública.
-         Amélia, teremos de nos conformar. Um filho policia não será assim tão mau.
-         Está calado homem, não me digas nada. Sonhava vê-lo médico. O destino desfez esse sonho e agora quer vestir ao meu menino uma farda cinzenta. De médico a policia vai um fosso enorme.
-         Mas nas suas fileiras, a policia terá homens cujo valor os poderia um dia ter levado a tirarem um curso de medicina, e que têm opinião formada sobre a vida. Deixarão assim de existir na policia apenas homens desprovidos de qualidades, tais como a moral, a solidariedade, o respeito pelo seu semelhante, qualidades essas que enobrecem o espirito humano e que realmente fazem falta à nossa policia. Vai Serôdio, enverga aquela farda e sê dos primeiros a dar um sopro de mudança à Policia de Segurança Pública. Vai descansado, que os teus pais terão orgulho em ti.
De médico a policia vai na realidade um fosso descomunal. Serôdio teria oportunidade de sentir a dimensão desse fosso, fosso esse que se viria a revelar num imenso vale, onde numa das encostas, banhada por um auspicioso dia de sol, lugar de sonhos, êxitos e direitos cívicos, estava a figura fictícia de um Serôdio doutor, brilhante, inchado pela importância que lhe era atribuída pelo sistema social. E como um vale tem obrigatoriamente duas encostas, na outra, sombria, votada a um permanente céu cinzento, carregado de nuvens de má fé social, se encontrava a figura real de um Serôdio policia, baço, desprezível e desprezado, humilhado por um sistema social, que irresponsavelmente o considerava um mal necessário.
Pobre Serôdio, tivesse eu te conhecido a tempo...(em continuação, pág. 72, ex. XXIII)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003




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