...-
È isso mesmo rapaz- retorquiu o pai de Serôdio- um
homem enrascado è pior do que sei lá o quê!
-
Tu falas muito bem, mas o Serôdio está aqui está a
acabar a tropa. E depois?
-
Depois- disse D. Silvina- depois alguma coisa se há-de arranjar. Os
amigos servem para as ocasiões e eu tenho a certeza de que ainda existirão
amigos do meu marido, que a meu pedido poderão arranjar um emprego interessante
para o Serôdio.
-
Eu agradeço a sua disponibilidade D. Silvina, mas com
um pouco de sorte vou resolver o meu próprio problema- disse Serôdio
convictamente, dando assim a entender que tinha encontrado uma solução. Por
isso o pai perguntou-lhe:
-
Mas então tens alguma coisa em mente?
-
Sim pai, tenho. Vou concorrer à PSP!
-
Vais o quê?- perguntou a mãe de Serôdio, com uma
expressão facial que demonstrava estar-se a sentir escandalizada.
-
Vou tentar entrar na Policia de Segurança Pública.
-
Ai meu Deus... Serôdio, não faças uma coisa dessas-
dizia D. Amélia- tu mereces coisa bem melhor do que isso...
-
Mãe, è um emprego do Estado. Eu não estou em condições
de ser esquisito.
-
Manuel, vê se tiras esta ideia da cabeça do teu filho-
suplicava D. Amélia ao marido.
-
Sabes qual è o tipo de serviço na PSP e quais as
pessoas que lá estão nos quadros, não sabes?- perguntou o senhor Manuel ao
filho.
-
Sei pai!
-
Tu já és um homem, Serôdio. Pondera bem antes de te
decidires, porque depois será tarde para te arrependeres- continuou o pai de
Serôdio.
-
Qual è a tua opinião sobre a minha ida para a policia?
-
Não fico a saltar de alegria, tal como a tua mãe. O
serviço que a policia desempenha não è nada simpático, e depois ver-te
misturado com homens sem nenhuma formação, vai-me custar muito.
-
Mas pai, se a nossa sociedade está a evoluir,
obrigatoriamente que a evolução há-de chegar à Policia de Segurança Pública.
-
Evolução? Com aqueles basbaques? Eu bem sei o que
senti quando tive de ir à esquadra por causa do que te aconteceu- dizia D.
Amélia- parecia que tinha entrado num antro de estupidez. Só via homens de
aspecto rude, grosseiros, a olharem para nós. Aqueles serão incapazes de
evoluir.
-
Esses talvez não evoluam, mas outros que virão a
entrar, tal como o Serôdio...- disse por sua vez D. Silvina- eu apoio o Serôdio
nesta sua decisão. A falta de emprego, hoje em dia, è muito grande. Isso fará
com que os quadros da policia sejam preenchidos com pessoas mais capazes.
-
Para a admissão ao curso não tenho que ter grandes
preocupações, pois apenas preciso de prestar provas físicas, já que estou
isento das provas escritas.
-
E porquê- perguntou D. Amélia.
-
Porque tenho habilitações demasiado altas para o nível
mínimo exigido, que è a quarta classe, como sabem.
-
És quase considerado um doutor- disse D. Silvina
sorrindo.
-
Se realmente vier a fazer parte dos quadros da PSP,
empenhar-me-ei para melhorar a imagem da corporação. Já que me vão pagar um
ordenado, è o mínimo que posso fazer em retribuição.
-
Talvez tenhas razão. È possível que a policia evolua-
disse o senhor Manuel.
-
Pai, alguém tem de fazer aquele trabalho. A segurança
è indispensável à estabilidade de qualquer país. Um dia, o nosso governo terá
de apostar no serviço e nos homens da Policia de Segurança Pública.
-
Amélia, teremos de nos conformar. Um filho policia não
será assim tão mau.
-
Está calado homem, não me digas nada. Sonhava vê-lo
médico. O destino desfez esse sonho e agora quer vestir ao meu menino uma farda
cinzenta. De médico a policia vai um fosso enorme.
-
Mas nas suas fileiras, a policia terá homens cujo
valor os poderia um dia ter levado a tirarem um curso de medicina, e que têm
opinião formada sobre a vida. Deixarão assim de existir na policia apenas
homens desprovidos de qualidades, tais como a moral, a solidariedade, o
respeito pelo seu semelhante, qualidades essas que enobrecem o espirito humano
e que realmente fazem falta à nossa policia. Vai Serôdio, enverga aquela farda
e sê dos primeiros a dar um sopro de mudança à Policia de Segurança Pública.
Vai descansado, que os teus pais terão orgulho em ti.
De
médico a policia vai na realidade um fosso descomunal. Serôdio teria
oportunidade de sentir a dimensão desse fosso, fosso esse que se viria a
revelar num imenso vale, onde numa das encostas, banhada por um auspicioso dia
de sol, lugar de sonhos, êxitos e direitos cívicos, estava a figura fictícia de
um Serôdio doutor, brilhante, inchado pela importância que lhe era atribuída
pelo sistema social. E como um vale tem obrigatoriamente duas encostas, na
outra, sombria, votada a um permanente céu cinzento, carregado de nuvens de má
fé social, se encontrava a figura real de um Serôdio policia, baço, desprezível
e desprezado, humilhado por um sistema social, que irresponsavelmente o
considerava um mal necessário.
Pobre
Serôdio, tivesse eu te conhecido a tempo...(em continuação, pág. 72, ex. XXIII)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA
Março/2003
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