sábado, 6 de julho de 2013

RETROSPECTIVAS DE MOMENTOS PORTUGUESES, Á MESA, NUMA SALA AFRICANA

...Ao chegar a casa, na Viela da Fonte dos Amores, recebeu a boa notícia de que nesse Sábado iriam todos jantar à casa Lobito de Benguela, com a sua querida amiga D. Silvina e o Armando, aquele inestimável amigo negro. E era assim que na sala africana todos se encontravam à mesa, falando com alegria. Dizia D. Silvina:
-         Há quanto tempo estás na tropa, Serôdio?
-         Estou há dez meses. Daqui a seis venho-me embora.
-         A tropa è boa?- perguntou a senhora.
-         Penso que em tempo de guerra a tropa deve ser uma coisa muito má. Em tempo de paz a tropa è apenas maçadora. Para aqueles que têm a mesma idade que eu, mas têm postos superiores ao meu, a tropa deve ser muito melhor do que a minha. Agora para mim, que não tenho posto nenhum, que recebo ordens de toda a gente, a tropa è mesmo muito maçadora.
-         Recebes ordens de toda a gente porque eles são uns estúpidos- declarou a mãe de Serôdio.
-         Mãe, eu efectivamente não consegui fazer os testes que eles me puseram à frente. Como podia eu aspirar a ser oficial com nota zero?
-         Mas eles deviam ter compreendido a razão da tua incapacidade.
-         Na tropa, ou è ou não è- disse o pai de Serôdio- no caso do nosso filho«não foi», e ele foi para soldado raso. E então? Eu também fui soldado e ainda aqui estou.
-         Mas senhor Manuel, o seu filho chegou a estar no curso dos oficiais. Deve-lhe ter custado um bocado!
-         Sim, acredito, mas a vida tem de continuar. E sei de alguns casos, em que conhecidos meus foram oficiais na tropa e depois deram em miseráveis na vida civil. E outros foram soldados na vida militar e conheceram a prosperidade na vida civil- disse o pai de Serôdio, disfarçando a mágoa que sentira pelo que sucedera ao filho em Mafra.
-         Como vai a tua memória Serôdio?- quis saber D. Silvina.
-         Tenho-a obrigado a funcionar. Preocupo-me em ler bastante. Estou a melhorar. E o seu sobrinho Narciso, por onde anda ele?- perguntou Serôdio subitamente.
D. Silvina teve um momento de silêncio. Um certo desconforto instalou-se na sala.
-         O menino Narciso è quase um doutor- respondeu Armando com uma expressão de fadiga.
-         Porque è que te lembraste agora do meu sobrinho?- perguntou D. Silvina.
-         Porque nunca mais ouvi falar dele. Ultimamente tem-me vindo à memória.
-         O Narciso está a tirar um curso de Inglês numa universidade do Norte. Acho que lhe falta só um ano para acabar esse curso.
-         Tem falado com ele?- perguntou Serôdio.
-         Tento evitá-lo- disse a senhora- depois do que se passou nesta sala, naquela noite, nunca mais tive grande vontade em lhe falar. Um sobrinho que me tentou assaltar e se calhar até mais do que isso, não fosse a tua oportuna intervenção, não me merece qualquer consideração. O meu irmão já reparou que eu não tenho grande estima pelo filho, por isso a nossa relação já conheceu melhores dias.
-         Mas então o seu irmão não compreende os seus motivos?
-         Compreende! Tanto compreende que quando o Narciso confessou o assalto, o meu irmão mandou-o  de castigo para a campanha do tomate, em França.
-         Eu não sabia disso- interrompeu Serôdio.
-         Pois não Serôdio, ele foi para França no dia seguinte a tu teres sido violentamente agredido. Por lá passou as férias desse verão. Mas o que aconteceu, è algo que marca profundamente uma família. O meu irmão fala pouco comigo, mais por vergonha do que por outra razão. Os parâmetros de educação em que eu e ele fomos educados, estão muito distantes da acção que o filho dele cometeu em relação a mim. Eu sei que o meu irmão vive um dilema muito grande. Por um lado tem um filho a quem ama e a quem necessita de proteger, por outro lado tem-me a mim, que sou a sua única irmã, viúva. De certa forma ele sente que lhe mereço o seu carinho e o seu apoio. E eu fui vítima da má índole do seu filho. Na medida do possível, tento aliviá-lo desse tremendo peso, mas lá estão as severas regras morais do nosso pai a falarem mais alto. No entanto, a vida tem de continuar, não è assim D. Amélia?- interrogou D. Silvina, dirigindo-se à mãe de Serôdio.
-         È verdade, a vida sempre continua. O seu sobrinho Narciso já está encaminhado, agora o meu filho...
-         O teu filho não è doente nem aleijado- interrompeu Serôdio...(em continuação, pág. 69, ex. XXII)
in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

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