quinta-feira, 30 de março de 2017

UM GUERRILHEIRO DESTROÇADO

...O alferes Mendes encontrava-se na messe de oficiais. Tinha por companhia o sabor fresco de algumas ansiadas cervejas. Eram na verdade boas amigas. Em qualquer altura faziam companhia, tinham o condão de  adormecer as mágoas e os maus pensamentos, e... não faziam perguntas nem exigiam respostas. Repentinamente o alferes Mendes ouviu um grito horrível, carregado de amargura, que viera da parada. Abandonando as garrafas de cerveja já vazias, correu para a porta da messe. A alguns metros, enquanto os cinquenta turras e os soldados que os guardavam observavam atónitos, um dos da companhia rebolava-se no chão, impregnando-se de poeira. O alferes Mendes deu uma corrida.
-         Quem é?- perguntou a um dos soldados que montava guarda aos guerrilheiros angolanos.
-         É o alferes Santa Cruz, meu alferes- respondeu o jovem soldado.
-         O Santa Cruz?- e o alferes Mendes correu em direcção a Álvaro- Álvaro, que se passa?- perguntava o alferes Mendes enquanto tentava segurar o amigo, que como louco se contorcia no chão.
         O alferes Santa Cruz tinha um pronunciado golpe no rosto. O sangue que jorrava, misturando-se com o pó, o suor e as lágrimas, formava uma pasta entristecedora, uma máscara de tenebroso sofrimento. Vieram em seu auxílio um dos enfermeiros da companhia e o próprio comandante.
-         Alferes Mendes, ajude o enfermeiro a dar uma injecção ao alferes Santa Cruz- dizia o capitão Rebelo.
-         Sim meu capitão- respondeu o alferes Mendes que se encontrava acocorado junto a Álvaro, na companhia do enfermeiro- mas o que foi que se passou? O que é que o pôs assim?
-         Tive de lhe dar a notícia da morte da namorada. Parece que foi assassinada.
-         Assassinada?... porra, que coice. Pobre diabo, não admira que esteja neste estado. Vivia na alegria de escrever cartas à rapariga e na ânsia de receber cartas dela. Deve estar destroçado.
-         Completamente alferes Mendes, completamente. Para ele acabou a guerra. Depois de ver esta reacção, não corro o risco de o colocar em combate. Poderá ter perdido capacidades de comando e porventura tornar-se num sanguinário.
-         Como meu capitão?

-         Não se admire alferes Mendes. Com muita facilidade poderá culpar a guerra de o ter retido aqui em Angola, e assim, não lhe ter dado oportunidade de proteger a pobre rapariga. E a guerra existe porque existe o povo angolano, que luta contra a ocupação portuguesa. Logo, ele poderá sentir que o povo angolano lhe manietou os movimentos. Logo, mais do que nunca, o povo angolano poder-se-á ter tornado aos olhos dele como seu inimigo, a título muito pessoal. E um guerrilheiro destroçado pela dor pode-se transformar numa arma mortífera e nada esclarecida. Ele poderá ver nas populações de Angola o assassino da namorada, e corre-se o risco de ele fazer a sua própria guerra, com a agravante de ter um pelotão sob o seu comando. Não vou facilitar...(pág. 100, ex. XXXIV)

in Visitados
Novembro/1999

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