As duas janelas, que ladeavam a porta de pau da casa do oleiro, estavam brilhantes com a luz que por elas transbordava. Pela chaminé fluía um fumo calmo. Cheiro de lenha de pinheiro queimada, misturado com os aromas natalícios que andavam no ar, eram um condimento da quietude da aldeia portuguesa.
Luisa e Américo chegaram junto à porta. Com os nós dos dedos Américo Afonso bateu no pau rijo que escondia a intimadade daquele lar.
- Quem é?- perguntou uma voz de rapazinho.
- Sou eu, a mãe- respondeu Luisa.
A porta logo se abriu. À luz das candeias de azeite surgiu um rapazinho loiro.
- Boas noites Carlos. Aqui te trago a tua mãe.
- O senhor Doutor Américo veio acompanhar a minha mãe?- perguntou o pequeno Carlos Avilar.
- É verdade. Estás admirado?
- Há por aí muitos senhores doutores que em calhando não o faziam- disse o pequeno.
À porta surgiram os pais de Luisa e também a pequenina Rosa. Fizeram pressão para que o senhor Doutor entrasse, mas este recusou, pois a família esperava-o na Casa das Leis.
Após os votos mútuos de uma santa noite, Américo abandonou a casa de Luisa, não sem antes lhe ter enviado um suplicante e apaixonado olhar, ao que ela correspondeu. Américo inspirava o Natal que existia no ar frio. Pensava que, tal como o caminho do Calvário, em Jerusalém, ficara célebre, porque ali vivera Jesus Cristo os seus últimos minutos de vida terrena, também o caminho que levava de sua casa à casa de Luisa deveria ficar conhecido, porque fora através dele que Américo chegara à felicidade. Ao passar pela figueira à beira do caminho, tirou-lhe o chapéu. Ela merecia este reverência. Só uma árvore respeitável como aquela poderia ter perfil para ser testemunha de uma declaração de amor, como fora a dele e também a de Luisa Avilar.
Pelo resto do caminho foi andando ligeiro, saltitando de quando em vez, assobiando ao ar, às casas, ao céu estrelado, à capacidade que o homem tem em conseguir ser feliz. Enfim, rejuvenescera.
Ao entrar na Casa das Leis perdera o ar macilento e sem vigor que o acompanhava havia bastantes meses.
- Minha mãe, venha de lá esse bacalhau cozido que tenho fome de lobo.
- Ai menino, que a noite transformou-te. Isto só pode ser milagre- dizia feliz D. Vitoriana.
- Pois foi minha mãe, foi milagre! Mas, demora o bacalhauzito?
- Não filho, num ápice estaremos todos à mesa.
Já noite dentro, quando todas as lareiras se haviam apagado, depois de muita alegria se ter espalhado, após muitos espiritos se terem aquecido e afogueado em altos ideais filosóficos, sob a inspiração do suor vermelho-tinto da terra, qual fragância de Baco, Américo encontrava-se deitado no seu leito, pensando, iluminado pelo luar suave, o mesmo luar que iluminava o belo rosto de Luisa. Quase se adivinhava que entre as duas casas se formara uma corrente telepática. Américo ansiava pelo momento em que pela primeira vez abraçaria Luisa Avilar.
Luisa tentava pôr um pouco de racionalidade em toda aquela situação. E mais do que os medos de enfrentar os preconceitos sociais, era o remorso latente em colocar na sua vida um outro homem, no lugar de António Avilar, que a afligiam. Iria finalmente compreender que António não passava de uma bela recordação, ecos de uma guerra distante, apenas e só uma saudade...
in Quando Um Anjo Peca
Março/1998
3 comentários:
Que esta mística se prolongue áqueles que amas!
Feliz Natal
quanto mais simples e místico o nosso Natal, mais forte e profundo se torna. obrigado pela visita (mesmo através do imperdoável: quem diria!) e bom Natal.
Mais um excelente pedaço de prosa!
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