sexta-feira, 16 de abril de 2010

FORMULAÇÃO DE UMA SENTENÇA

...O pai manteve-se por momentos em silêncio. Depois, levantando-se perguntou:
- Porque razão è que de repente te lembraste da tua tia Silvina, se estávamos tão longe dela?
- Acho que ela não gosta de mim.
- Sim, e porque não gosta de ti, vai-se informar ao liceu que tu frequentas sobre a tua conduta e depois vem fazer-me queixa. È isso que queres dizer Narciso?
- Pai, porque estás zangado comigo?
- Achas que eu tenho motivos para estar zangado contigo?
- Não, não acho.
- Óptimo. Então diz-me porque razão te lembraste da minha irmã.
- Pai, eu sempre achei que ela reprova a minha maneira de ser, e por esse motivo, mais cedo ou mais tarde, sempre senti que ela te viria encher os ouvidos a meu respeito.
- Sou então assim uma pessoa tão influenciável, que dê crédito a qualquer coisa de ruim, que me venham dizer sobre o meu filho Narciso? È esse o conceito que fazes do teu pai?
- Então qual a razão deste inquérito? Pareces um policia.
- Pois muito bem, acabou o jogo do faz de conta que não sei de nada- disse o engenheiro Carlos Conde, fixando intensamente o filho- a minha irmã esteve aqui esta tarde. Veio-me pôr ao corrente de algo muito grave. Esta madrugada, cerca das duas horas da manhã, a casa dela foi assaltada por quatro indivíduos. Sabias disto?
- Eu??... eu não pai, como havia eu de saber? Passei a noite em casa.
- E eu passei a noite fora- disse o engenheiro Carlos Conde- mas como ia dizendo, ocorreu esse assalto em casa da tua tia, mas ela estava avisada de que esse assalto iria ocorrer. Um tal Serôdio, aquele mesmo colega com quem tu não te dás, avisou-a. E o mais grave de tudo foi ter-te acusado como o promotor do assalto. Que me tens a dizer a isto?
- O Serôdio acusou-me de eu ter assaltado a casa da tia Silvina?
- È verdade. E o que è mais extraordinário è que o assalto deu-se mesmo. Os assaltantes dirigiram-se com precisão para o cofre que está escondido atrás de um quadro, na sala africana da tia, sem nada terem vasculhado. Foram objectivamente ao sitio onde a minha irmã tem o mau hábito de guardar somas consideráveis de dinheiro. Como achas que os ladrões descobriram o local onde o cofre está escondido?
- Pai, tu estás-me a perguntar algo ou a acusar-me de algo?
- Eu não estive em Aveiro ontem. Eu só quero que tu me ajudes. Esse Serôdio deve ser um crápula, para conseguir inventar algo a teu respeito assim tão abominável. Foi a forma que arranjou para se vingar de alguma questão menos esclarecida que entre vós exista. Tu sabias ontem onde eu estava?
- Sim, a mãe disse-me que possivelmente só hoje virias para casa.
- Pois è meu filho- disse o engenheiro Carlos Conde, que subitamente agarrou o filho pela camisa- se nesta história há um crápula, esse, infelizmente, és tu. Sabias que eu não estava em Aveiro, pensavas que talvez só hoje eu regressasse. Mas surgiram alguns contratempos. Eu cheguei a casa era uma hora da manhã e contrariamente ao que há pouco disseste, tu não estavas em casa. Eu deitei-me eram duas e meia e tu sem apareceres. Planeaste o assalto para um dia em que sabias que eu não estaria em Aveiro. Isso fazia-te sentir muito mais à vontade.
- Pai, tu só me podes acusar tendo provas.
- Para mim não há prova maior do que a tua mentira. Eu ontem fui ao teu quarto e a cama estava vazia. Condenaste-te quando há pouco me disseste que ontem à noite não saíste de casa. Pensavas que eu não tinha cá estado para poder comprovar isso. È verdade ou não è que ontem à noite assaltaste a casa da minha irmã?- perguntou o engenheiro Carlos Conde num berro raivoso, ao mesmo tempo que dava um murro na sua secretária.
Narciso nunca vira assim o pai. Naquele momento temia pela sua própria segurança. As contas tinham-lhe saído furadas. O pai regressara a casa na hora mais critica. Não havia por onde fugir. Errara ao dizer que não saíra de casa. Seria melhor confessar. Suando, disse então:
- È verdade pai. Fui eu.
- E quem tentou agredir a tua tia com uma lança?
- Fui eu também. Mas era só para a assustar. Fiquei doido quando me senti descoberto.
- Se era só para a assustar ou não, nunca o iremos saber, porque felizmente o tal Serôdio agarrou-te.
- Foi pai, foi isso.
- Tu não tens que chegue? O que è teu não te basta?
- Queria mais um dinheirito para as minhas férias.
- Férias?
- Sim, no Algarve. Vou fazer campismo.
- Um bom campismo te vou dar eu. Acabando as aulas, vais direitinho para o combóio, que te irá levar até França, onde vais trabalhar na campanha do tomate. Tenho alguns amigos que me tratarão da tua inscrição.
- Mas pai...
- Queres dinheiro, pois vais suar para o obteres. Nos próximos meses não te quero aqui. Tenho vergonha da tua tia. O que tu fizeste não sei se alguma vez poderá ser perdoado. Tu tentaste assaltar a minha única irmã, quiçá matá-la. Tiveste muita sorte em a tua tia ter decidido vir desabafar comigo, e não com a policia. Não digo mais nada, porque acho que um pai, em circunstância alguma, não deve dizer a um filho aquilo que me está a passar pela cabeça. A partir de hoje não sais mais de casa, excepto para ires ás aulas, até viajares para França. Vai para o teu quarto.
Narciso Conde abandonou o escritório do pai, completamente derrotado. Mas impunha-se uma vingança, uma severa vingança. O Serôdio conseguira estragar-lhe o verão, mas não se iria ficar a rir...(em continuação, pág.45- ex. XIII)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

MARÇO/2003

6 comentários:

MM disse...

Caro Poeta do Penedo,

Este excerto recordou-me algo que me faz confusão e que um destes dias ainda vai motivar um texto meu.

Há miudagem que vê o dinheiro que os pais, avós ou tios têm como algo que não lhe diz respeito, e acabam por adoptar uma atitude de procurarem obter para eles tanto quanto possível dessas fontes.

Fico confuso perante a incapacidade de verem que a ganância de quererem garantir o deles, retirando aos pais, avós ou tios, é uma forma de pobreza que resulta da falta de pensamento colectivo.

Assaltar tios, arrepia-me.

Marcelo Melo
www.3vial.blogspot.com

Teresa Fidalgo disse...

Poeta do Penedo,

Este pai tomou uma boa atitude... quisera eu saber tomar também as atitudes certas perante os erros dos meus filhos - esse é um assunto que muito me preocupa.

Saudações

Poeta do Penedo disse...

Caro Marcelo Melo
na verdade a riqueza futura começa a construir-se na juventude, mesmo quando ainda se não é independente, com a organização da mente. Quem, de muito jovem, tem inclinação para viver com o que lhe não pertence, ou com o que nada fez para conseguir, não irá muito longe.
Com amizade.

Poeta do Penedo disse...

Cara Teresa Fidalgo
não se preocupe. Nada assim lhe irá acontecer. Este Narciso Conde estava destinado, desde o principio, a ser um mau carácter. Por isso não houve pai algum que o conseguisse recuperar.
Briosas saudações.

Gibson Azevedo disse...

Um bom texto, Caro Fareleira Gomes, no qual vemos sentimentos de culpas e de cobranças, via decepção de um pai para com o filho. Observamos, como era de se esperar, que a mentira tem pernas curtas. Putz!... Como a verdade é terrível para quem é culpado e se acha amparado por uma mentira!
Saber ser Pai é muito difícil. É sacrificante! E se por vezes surgem decepções quanto as amadas crias, deparando-se, estes autênticos genitores, como o grande Rei Salomão, diante de situações de extrema acidez. A sua condição tutelar os obriga a tomar, na admoestação dos seus noviços - Seres humanos em comêço - severas decisões punitivas. Nada de passar a mão na cabeça de um filho, ante a um deslize, por este, cometido.
Bom texto, repito.
Abraços desde Terras Brasileiras.

Poeta do Penedo disse...

Caro Gibson Azevedo
na verdade uma situação que eu vivi no imaginário, de forma entusiástica, que, como pai, seria uma crueldade imensa vivê-la na realidade.
Neste dia muito especial, um forte abraço.