...Malhal de Sula era uma pequena mas muito produtiva quinta. O meu pai, Manuel Passos Lopes, e a minha mãe, Beatriz de Sousa, haviam-na comprado três anos antes de eu nascer. Trabalharam arduamente para que, do terreno até então baldio, nascesse uma área agrícola muito fértil. A maior riqueza residia na produção vinícola, muito embora os currais da quinta estivessem atulhados de porcos e de vacas. Por essa razão, a quinta de Malhal de Sula apresentou-se-me com o aspecto de imensos vinhedos, o fervilhar de gente assalariada, e nunca outra coisa onde tivesse entrada a desolação.
A casa onde eu nasci e me criei muito longe estava de ser um palácio, mas era uma casa enorme, nobre, nobreza que nada tinha a ver com sangue real, mas nobreza de carácter, respeito tanto por a quem se devia obediência, como por quem obedecia. Princípios valiosos estes. E era também uma casa cheia. Cheia de fartura e de amor. Os meus pais, pessoas educadas na terra, e que à terra pediam o sustento, para além do trabalho duro do braço na enxada, e mais tarde, na responsabilidade e preocupação em bem saber gerir a riqueza que criaram, tiveram a sensibilidade de fazer de mim uma criança feliz.
Por alturas da terceira invasão francesa, aquando da batalha do Buçaco, que decorreu a poucos quilómetros da nossa casa, o meu pai escondeu-me a mim e mais a minha mãe num alçapão que tinha construído por debaixo da adega, enquanto ele e os seus assalariados patrulhavam a quinta, na tentativa de demover de más acções quem, eventualmente, ali penetrasse com intenções menos honestas. É que naquela época não eram somente os soldados franceses que pilhavam. Muitos salteadores, bem portugueses, aproveitando-se do caos e temor reinantes, também o faziam.
O meu pai não quis que eu fosse lavrador como ele. Queria ver o seu único filho como médico. O rapaz havia de ser doutor. E assim me vi entregue aos cuidados de frei Lourenço, natural da Mealhada, frade muito letrado, do convento de Santa Cruz de Coimbra. Corria o ano de 1811.
Durante os oitos anos que se seguiram, frei Lourenço transmitiu-me muito do seu saber. Aprendi latim, língua que me serviu de veículo para ter acesso ao conhecimento de toda a ordem. E como de ciências se tratava o meu futuro, estudei muitos compêndios de física e química, tendo-me maravilhado com os trabalhos sobre anatomia de Leonardo Da Vinci...(em continuação, pág. 16, ex VII)
in Alma de Liberal
Junho/2009
sexta-feira, 17 de setembro de 2010
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4 comentários:
Caro Poeta do Penedo,
Eis nesta história descrito o processo de ascensão social que foi objectivo de inúmeras famílias de meios rurais e de profissão agrícola: gerar alguma riqueza para lançar os filhos nos estudos superiores e assim resgatá-los da previsível vida dura e combativa do campo.
Hoje vivemos um paradigma diferente: do mundo rural já pouco nos sobra. O desafio actual é mais o de conseguir dotar os filhos de estudos a fim de que não tenham empregos como a construção civil.
Antes, como agora, queremos subir na vida e proporcionar aos filhos condições para irem mais longe.
Um abraço,
Marcelo Melo
Caro Marcelo Melo
Assim é, na verdade. Resta saber, no entanto, até quando é que ter um curso superior será sinónimo de subir na vida, pois que, com a explosão de cursos superiores a que temos assistido surgir, corre-se o risco de se cair na vulgaridade e saturar o mercado, muito embora daí advenha um maior nível cultural da população portuguesa.
É que, hoje em dia, os cursos técnicos estão a começar a ganhar terreno aos cursos superiores, no que à empregabilidade diz respeito.
Mas que se continua a sonhar ter-se um filho doutor na família, isso é inegável. Agora, como há duzentos anos.
Com amizade.
Poeta,
concordo com seu comentário,aqui no Brasil esta acontecendo exatamente isso,mas tenho um outro olhar para essa história,contudo não sei se dará continuidade a ela.Mas,ficarei atenta esperando sua continuação.
Que seus caminhos sejam iluminados,com bençãos sem medida.
um abraço verde amarelo
Mari
Cara Mari
espero que a continuação vá de encontro ás suas expectativas. Vejamos onde nos irá levar o doutor Joaquim Lopes.
Com amizade.
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