sexta-feira, 17 de setembro de 2010

MALHAL DE SULA, ENTRADA DE UM PEQUENO PARAÍSO

...Malhal de Sula era uma pequena mas muito produtiva quinta. O meu pai, Manuel Passos Lopes, e a minha mãe, Beatriz de Sousa, haviam-na comprado três anos antes de eu nascer. Trabalharam arduamente para que, do terreno até então baldio, nascesse uma área agrícola muito fértil. A maior riqueza residia na produção vinícola, muito embora os currais da quinta estivessem atulhados de porcos e de vacas. Por essa razão, a quinta de Malhal de Sula apresentou-se-me com o aspecto de imensos vinhedos, o fervilhar de gente assalariada, e nunca outra coisa onde tivesse entrada a desolação.
A casa onde eu nasci e me criei muito longe estava de ser um palácio, mas era uma casa enorme, nobre, nobreza que nada tinha a ver com sangue real, mas nobreza de carácter, respeito tanto por a quem se devia obediência, como por quem obedecia. Princípios valiosos estes. E era também uma casa cheia. Cheia de fartura e de amor. Os meus pais, pessoas educadas na terra, e que à terra pediam o sustento, para além do trabalho duro do braço na enxada, e mais tarde, na responsabilidade e preocupação em bem saber gerir a riqueza que criaram, tiveram a sensibilidade de fazer de mim uma criança feliz.
Por alturas da terceira invasão francesa, aquando da batalha do Buçaco, que decorreu a poucos quilómetros da nossa casa, o meu pai escondeu-me a mim e mais a minha mãe num alçapão que tinha construído por debaixo da adega, enquanto ele e os seus assalariados patrulhavam a quinta, na tentativa de demover de más acções quem, eventualmente, ali penetrasse com intenções menos honestas. É que naquela época não eram somente os soldados franceses que pilhavam. Muitos salteadores, bem portugueses, aproveitando-se do caos e temor reinantes, também o faziam.
O meu pai não quis que eu fosse lavrador como ele. Queria ver o seu único filho como médico. O rapaz havia de ser doutor. E assim me vi entregue aos cuidados de frei Lourenço, natural da Mealhada, frade muito letrado, do convento de Santa Cruz de Coimbra. Corria o ano de 1811.
Durante os oitos anos que se seguiram, frei Lourenço transmitiu-me muito do seu saber. Aprendi latim, língua que me serviu de veículo para ter acesso ao conhecimento de toda a ordem. E como de ciências se tratava o meu futuro, estudei muitos compêndios de física e química, tendo-me maravilhado com os trabalhos sobre anatomia de Leonardo Da Vinci...(em continuação, pág. 16, ex VII)

in Alma de Liberal

Junho/2009

4 comentários:

MM disse...

Caro Poeta do Penedo,

Eis nesta história descrito o processo de ascensão social que foi objectivo de inúmeras famílias de meios rurais e de profissão agrícola: gerar alguma riqueza para lançar os filhos nos estudos superiores e assim resgatá-los da previsível vida dura e combativa do campo.

Hoje vivemos um paradigma diferente: do mundo rural já pouco nos sobra. O desafio actual é mais o de conseguir dotar os filhos de estudos a fim de que não tenham empregos como a construção civil.

Antes, como agora, queremos subir na vida e proporcionar aos filhos condições para irem mais longe.

Um abraço,

Marcelo Melo

Poeta do Penedo disse...

Caro Marcelo Melo
Assim é, na verdade. Resta saber, no entanto, até quando é que ter um curso superior será sinónimo de subir na vida, pois que, com a explosão de cursos superiores a que temos assistido surgir, corre-se o risco de se cair na vulgaridade e saturar o mercado, muito embora daí advenha um maior nível cultural da população portuguesa.
É que, hoje em dia, os cursos técnicos estão a começar a ganhar terreno aos cursos superiores, no que à empregabilidade diz respeito.
Mas que se continua a sonhar ter-se um filho doutor na família, isso é inegável. Agora, como há duzentos anos.
Com amizade.

Mari Amorim disse...

Poeta,
concordo com seu comentário,aqui no Brasil esta acontecendo exatamente isso,mas tenho um outro olhar para essa história,contudo não sei se dará continuidade a ela.Mas,ficarei atenta esperando sua continuação.
Que seus caminhos sejam iluminados,com bençãos sem medida.
um abraço verde amarelo
Mari

Poeta do Penedo disse...

Cara Mari
espero que a continuação vá de encontro ás suas expectativas. Vejamos onde nos irá levar o doutor Joaquim Lopes.
Com amizade.