sexta-feira, 21 de novembro de 2008

PASSEIO PELAS MINHAS PALAVRAS (urbanidade e défice cívico)

(ESCREVO, PORQUE ESTA SEMANA FOI LANÇADO POR AÍ UM LIVRO, DA AUTORIA DE UM JORNALISTA, CUJO FUNDAMENTO SÃO RELATOS DE PROFISSIONAIS DE UMA DETERMINADA ÁREA. NÃO TINHAM ESSES PROFISSIONAIS NECESSIDADE DESSE RECURSO, POIS UM LIVRO SOBRE ESSA TEMÁTICA JÁ EXISTE, HÁ ALGUNS ANOS. E MESMO SEM LER O LIVRO QUE AGORA FOI LANÇADO, GARANTO, QUE O QUE FOI ESCRITO HÁ ALGUNS ANOS, É MUITO MAIS GENUÍNO, PORQUE TEM O QUE A ESTE FALTA: EXPERIÊNCIA E ALMA)

Homens e mulheres de azul vestidos, que centímetro a centímetro conquistais a indiferença, o desprezo e o desrespeito da maioria daqueles que convosco partilham as ruas da vossa cidade, o que vos move a serdes o bode expiatório do vosso país, onde os maus fígados da vossa sociedade despejam a imunda bílis, onde os maus carácteres, por força de uma democracia para vós sem direitos, encontram a abençoada oportunidade, para no azedo da sua vil perfídia, por momentos terem no rosto a agrura da vítima? Que vos move a terdes esse humilhante papel? A louca veleidade de tentardes ser abelhas obreiras num jardim sem néctar? O amor ao interesse público, o interesse do público que de vós desdenha? Esta sociedade é uma mãe megera, pois megeras são todas as mães que descriminam alguns dos seus filhos.
É brilhante e bela a palavra democracia.
Também por momentos, bela e brilhante pareceu ser a perspectiva de vida daquele homem necessitado, a quem foi oferecido um emprego numa determinada empresa. As instalações eram óptimas, modernas e acolhedoras. Foi-lhe dito que trabalharia num determinado escritório. O homem necessitado nele entrou. Era uma divisão excepcional: bem iluminada, maravilhosos quadros nas paredes, poltronas de cabedal, uma imensa secretária de fino metal, computador, internet, telefone particular, jornais diários pois a informação era a chave do negócio. O peito do homem necessitado era pequeno para albergar tanta alegria.
Preparava-se ele para, pela primeira vez se sentar na cadeira almofadada, quando aos seus já descontraídos ouvidos chegou um horrível grito de aviso. Que não se sentasse, pois aquele não era o seu local de trabalho!! Tinha havido um pequenino equívoco. Para aquele local viria trabalhar o filho do senhor engenheiro, do senhor doutor, do amigo de ambos. O homem necessitado iria executar as funções de técnico especializado de despoluição orgânica de sanitas, técnico especializado de manutenção específica das condições de utilização dos recipientes de escritório, técnico especializado da descontaminação de micróbios das vias internas de circulação da empresa.
O homem necessitado, de fato macaco vestido, assim passou a viver o seu dia-a-dia, desgastando-se incansavelmente, não tendo braços para tanto micróbio. Na sua humilde e triste condição, sonhando por vezes com um lugar ao sol que um dia lhe fora prometido, lá foi compartilhando o espaço daquela hipócrisia, com a opulência e riqueza dos restantes colaboradores. Afinal, para o homem necessitado, aquela empresa pareceu ser o que para a sua particular realidade nunca foi.
Sociedade de Gestão de Sentimentos e Ideias à Portuguesa Actuando S.A, era o nome da tal empresa.
Tal como o homem necessitado daquela empresa, também os homens e mulheres de azul vestidos, na nossa sociedade são aceites, disso não há dúvidas...mas, a troco de serem uns fiéis seguidores do servilismo, aos quais se tira o direito ao pensamento, ao sentimento, e à inteligência, para assim a nossa mesma sociedade poder ter sempre um escape, para onde possa depositar as frustrações do quotidiano.
Tu, azul destes homens e mulheres, de que estás à espera para reivindicares um pouco da tão falada democracia?
Sim, eu conheci um desses homens vestido de azul. Fui seu colega. Por incrível que a muitos e muitos isso possa parecer, era um homem igual a todos os homens que se vestiam de outras cores que não o azul. Esta é a sua história...

in Filhos Pobres da Revolta
Março/2003

5 comentários:

MM disse...

Bom excerto me proporcionou ler, caro poeta.

Quem sabe não vá eu atrás desse livro, movido justamente pelo aroma que dele deu ao trascrever uns parágrafos.

Saudações

Marcelo Melo

Ps: Genuinamente grato pelas bondosas e motivantes palavras que me endereçou. Quem sabe não possamos conversar por e-mail de forma mais concreta sobre a escrita. Sinto que me pode ajudar bastante a desenvolver ainda mais.

Anónimo disse...

Meu caro Marcelo Melo, tomando pela forma como escreve, e sobre o que escreve, um barómetro, pelo qual me dá a possibilidade de definir que tipo de leitor é você, as suas palavras são para mim um enorme elogio. Este livro (e porque o meu ritmo de escrita é lento, lentidão essa provocada por muitas condicionantes) levou-me três anos a escrevê-lo. Os que o leram apelidaram-no de um livro negro.
No entanto, escusa de ir atrás dele, porque não o vai encontrar, porque é um livro que o não é. Na verdade existe, está escrito, mas não publicado, como o não estão o meu 2º e o meu 4º.
Escrevo para a gaveta. E faço-o, porque não invisto energias em mim próprio, e isso acontece porque o país me dá a percepção de que o direito à intelectualidade é só para alguns. Principalmente a nega aos que, por acidentes de percurso, não puderam fazer uma licenciatura. Só os licenciados, neste país, têm direito ao pensamento; e talvez porque tenha receio de uma negação, relativamente à minha capacidade criativa.
Considero que um bom livro tem de ter duas componentes fundamentais: uma boa mensagem, e uma óptima forma pela qual essa mensagem é transmitida. Tento fazer por aglotinar as duas. Os ecos são-me favoráveis. Mas são apenas ecos.

O Marcelo não tem de me agradecer coisa nenhuma. Ficaria mal comigo mesmo se, perante tanto talento, me mantivesse silencioso. Você é um pensador, um observador do mundo que o rodeia. E essa é massa com que se fazem os escritores.
Espero bem que os seus professores tenham a verdadeira noção da flor que perante eles está a desabrochar. Força meu amigo, vá em frente...e acredite sempre em si. Está na idade das causas, da luta. Ficarei muito satisfeito se um dia, em alguma livraria, vir uma lombada, cujo autor seja Marcelo Melo.
fareleira.gomes@gmail.com é o meu e-mail.
Faça favor. Disponha.
Muito dificilmente terei algo para lhe ensinar, mas a troca de ideias nunca fizeram mal a ninguém.

Os meus sinceros cumprimentos.

Anónimo disse...

Amigo poeta

Ao ler este excerto, fiquei comovido, não só pelo conteúdo, mas pela simples razão de ter tido o previlégio de ler este magnífico livro, negro, como eu disse um dia, mas que tanta verdade exala. Mas sei, como o meu amigo poeta me disse, esta obra deverá ficar na gaveta para não melindrar niguém. Infelizmente, vivemos numa democracia curiosa, estranha, e que nem tudo pode ser contado.
Vejo que o Marcelo Melo ficou com água na boca só com alguns parágrafos.

Continua a debitar textos das tuas obras, vai por mim. Serás elogiado por isso.

Abraço

Anónimo disse...

Amigo xupaulo
é verdade, foste tu o autor do adjectivo de «negro» para o Filhos Pobres da Revolta.
Obrigado meu caro amigo. Irei seguir o teu conselho. Acho que o que escrevo, merece do seu autor um pouquinho mais de respeito. Esta é a forma, não sei se a correcta, de o autor respeitar as suas próprias palavras, já que o mundo editorial é para os extraterrestres, e eu sou um humilde terrestre, habitante de um país estranho...belo, mas estranho.

Um abraço.

Unknown disse...

Agrada me ler palavras como estas... trazem uma certa nostalgia e memorias.

Mas mais ainda foi ver e ouvir Demis Roussous... Eu era muito miudo... 6 ou 7 anos e nao percebia uma palavra do que ele dizia mas as musicas eram tao molodicas... cheguei a tirar algumas dessas musicas na minha viola... lembras te?
A minha tia capaz de se lembrar.

Aquele abraco

Saudades

Antonio Carlos Simao