sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

PASSEIO PELAS MINHAS PALAVRAS (La Lys, 09 de Abril de 1918)



Tudo era escuro. Tudo era hostil. Naquela vasta planície mergulhada na noite, desenrolavam-se muitos milhares de dramas simultaneamente. Naquele imenso pântano, situado na Flandres, no norte de França, cento e trinta e nove mil homens sofriam as agonias e as atrocidades da guerra. Movimentando-se sobre um terreno gelado e lamacento, os combatentes vegetavam. Eram Portugueses, Ingleses e Alemães. Já se encontravam naquele inferno de fogo, aço, frio, lama, má nutrição e morte, havia cinco meses.
Aquela era a guerra das trincheiras. Por isso, numa extensão de cinquenta e cinco quilómetros, entre Gravelle e Armentiéres, as tropas aliadas Portuguesas e Inglesas distribuíam-se num labirinto de trincheiras. Pouco abaixo dos pés dos soldados fluíam lençóis de água, que tornavam aquele lugar num lamaçal descomunal, onde os homens se atolavam, sofriam, desesperavam.
Nessa extensão de cinquenta e cinco quilómetros estava posicionada uma divisão de tropas portuguesas, distribuída ao longo de doze quilómetros. Era o sector de La Bassé. Esse sector de gente lusitana, era formado por mais de dez mil soldados. Entre eles encontrava-se o António Avilar. A terra tinha sido rasgada, para nela surgirem as hediondas trincheiras, quais valas comuns, onde mortos e vivos «coabitavam» num mórbido e tétrico escoar do tempo. Aqueles corredores infinitos, com metro e meio de largura, por cerca de três metros de altura, eram a habitação que a guerra oferecia áqueles muitos milhares de homens. As encostas das trincheiras, sulcadas de patamares, serviam de postos de vigia e controle do inimigo, bem como depósito de sacos de areia e despojos de batalhas, imensas vezes locais onde a vida findava para milhares de soldados.
Na madrugada de nove de Abril de 1918 as tropas portuguesas encontravam-se incrivelmente felizes. Havia poucas horas tinham recebido a notícia de que finalmente, talvez ainda nesse dia, iriam ser rendidas por tropas frescas. O martírio de cinco meses estava a chegar ao fim.
António Avilar, sentado no sopé de uma das encostas da trincheira, falava com um seu camarada de armas, o Quim Rouxinol. Chamavam-no assim, porque ele quando tinha tempo e disposição, assobiava com tal beleza, que fazia lembrar os passarinhos do saudoso Portugal...

in Quando Um Anjo Peca
Março/1998

2 comentários:

MM disse...

E será que não vive hoje o país, quiçá o mundo, num género de trincheira, no qual os vivos e os mortos, o bem e o mal, qual lama e solo firme, convivem com o emprego e a falta dele, o dinheiro e a bancarrota?

Quem nos renderá, caro poeta?

Anónimo disse...

Não tentemos ser mais infelizes do que aqueles infelizes de há 90 anos. Na realidade eles nunca chegaram a ser rendidos, e deu-se a batalha de La Lys no dia da prometida rendição, com as trágicas consequências para Portugal, que a história nos relata.
Mas estou de acordo, (completamente), com a imagem que o Marcelo Melo aqui deixou. Na verdade, no mesmo mundo, no mesmo continente, no mesmo país, na mesma cidade, no mesmo bairro, quantas vezes na mesma rua, coabitam o pobre e o rico, que muito embora pisando as mesmas pedras da calçada, vivem em mundos opostos, vergonhosamente opostos. E o mais impressionante é que tanto um como outro vão achando essas diferenças como normais. O pobre, porque o sofrimento já lhe retirou o discernimento; o rico, porque a indiferença, a ganância e a imoralidade lhe preenchem toda a alma, fazendo-o concluir, de forma absoluta e sem mais desagravo, que o mundo é mesmo assim.
Como tal, meu caro Marcelo Melo, façamos votos para que um dia a humanidade venha a ser rendida pela esperança numa humanidade melhor.