segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

PASSEIO PELAS MINHAS PALAVRAS (à beira do Mondego)

- Obrigado por ter vindo.
- Não tem de agradecer senhor Victor. Vai-me fazer muito bem conversar consigo. O que eu vi há oito dias exige rapidamente uma explicação. Estou a pôr em questão tudo o que pertence ao mundo.
- Até a si próprio, não é?
- Sim já questionei a minha própria existência.
- Pois então vá por mim, meu amigo. relaxe, dê liberdade aos seus sentidos. Deixe que eles lhe tragam as boas sensações de tudo o que nos rodeia. Estamos no inverno. Sinta a chuva meu amigo, sinta-a como um fluído da natureza, que efectivamente é. Olhe ali para baixo, repare como o Mondego vai compacto. Aprecie o esforço que os homens fizeram ao plantarem este parque, feito de árvores e jardins, entre a nudez do cimento e a maravilha natural que é o rio Mondego. E fique ciente de uma coisa: nada disto pode ser questionado, porque tudo existe na realidade. O que você viu há uma semana também existe e sabe porquê? O cosmos é uma infinita colectividade. Nós, habitantes do planeta Terra, somos apenas alguns dos seus membros. Diga-me Rui, tem você o dia livre para uma boa conversa?
- Claro que tenho senhor Victor. Um dois ou três dias. Estou emocionalmente perturbado. O psicólogo do meu serviço achou por bem que eu ficasse de baixa-. A minha mente está fixada no espectáculo que vi. Tenho pouco ou nenhum discernimento para enfrentar e resolver seja o que for.
- Pois vamos atenuar esse problema.
- Vamos?
- Sim, eu e você, os dois fazendo um trabalho mútuo de mentalização.
- Como pode o senhor Victor fazer uma coisa dessas? Não é psicólogo, nem psiquiatra!
- Pois não, mas tenho setenta anos de idade, fui enfermeiro durante trinta e cinco, tenho experiência de ver homens em aflição, e o problema que o aflige é para mim sobejamente conhecido.
- O senhor mantém-se calmo, mesmo depois de ter visto o seu filho partir!
- É verdade, estou perfeitamente calmo, porque o meu filho Álvaro partiu por sua livre e espontânea vontade. Feliz não posso estar, porque não irei conviver com o meu filho. Mas também não me sinto infeliz.
- Como é isso possível, senhor Victor? Ou estamos felizes ou infelizes.
- Se eu me sentisse infeliz estaria a ser egoísta, pois desejaria que o meu filho, para me fazer feliz, abdicasse do que ama. Sei que ele está bem. O meu estado de espírito talvez seja...nostalgia. É isso mesmo! Sinto-me nostálgico. Mas com o tempo me habituarei, se é que me resta algum. E entretanto o Álvaro vai contactar-me, assim como à mãe.
- Como pode ter a certeza disso?
- Porque ele está num ambiente bom e ama os pais. Naquele lugar dão muito valor ao amor e à amizade. Hão-de permitir que ele comunique. Mas...agora reparo, que esta chuva miudinha e maçadora não dá tréguas. Já estamos com as gabardinas e os guarda-chuvas bem molhados. Seria melhor recolhermo-nos num abrigo qualquer. Que me diz?
-Este ar fresco está perfeito, mas realmente a chuva está incomodativa. Podemos ri ao Brasileira. Não é longe.
- Óptima ideia. Em Coimbra provavelmente não haverá melhor local para falarmos de recordações. recordar num café cheio de história.
- O senhor Victor quer recordar algo?
- Se não se importa...
- De maneira alguma. Recordar é viver. Talvez viver o passado me prepare para o futuro.
- Quem sabe, não é? Este final de ano de 1996 já foi um dia o meu futuro longínquo. E daqui a três dias, quando o ano terminar, irá fazer parte do meu passado. O tempo não pára. Cada segundo que vivemos é um degrau da vida que subimos. Cada vez nos aproximamos mais do topo. Eu estou quase a atingir o patamar. Quando naquele dia distante me foi anunciado que em 1996 eu viveria a cena que o Rui viu, não fiquei com muita certeza de que isso viesse a acontecer...faltavam tantos anos. Foi o meu erro.
- Então conte. Estou expectante.
- Sim, contarei, quero contar, mas só quando estivermos confortavelmente sentados a uma mesa do Brasileira. Veremos se vamos conseguir um pouco de privacidade. Daqui até lá, senão se incomodar, preferiria ir em silêncio para colocar as recordações no lugar. Você merece que eu lhe conte uma história bem organizada...

in Visitados
Novembro/1999

2 comentários:

Clara Gomes disse...

"Deixar partir"
Parece tão fácil. Parece tão simples.
É deixar ir.
É perder a vida e ficar vivo.

MM disse...

O poeta denota, neste trecho, uma manifesta capacidade de manter a coerência do diálogo, sem o deixar galgar para terrenos em que as frases soam a falsas ou a chavões.

No fundo, pretendo aludir ao não haver perdido o controlo sobre o diálogo e àquilo que dele esperava.

Saudações,

Marcelo Melo