domingo, 30 de agosto de 2009

SOB O ARCO DO TRIUNFO

...O fogo da artilharia alemã continuava intenso como não se mostrara até então. O poder de resposta português era francamente inferior. Subitamente, ao barulho das explosões juntou-se também o som alternado e rápido das metralhadoras alemãs. Quase em simultâneo os portugueses perceberam a razão da ferocidade da artilharia inimiga. Servia para preparar um ataque de grande envergadura. Com a entrada das metralhadoras alemãs em acção, os soldados portugueses viram os capacetes alemães, com o seu adorno pontiagudo despontarem na trincheira, para logo de seguida, milhares de silhuetas saltarem os parapeitos da mesma e avançarem em três vagas de assalto. A fuzilaria lusa tentava desesperadamente conter o avanço inimigo. Mas quando, inexplicavelmente, o ataque se fez sentir também pela retaguarda, o exército português perdeu a operacionalidade. As silhuetas alemãs deram lugar a homens, homens que como os portugueses sofriam e matavam na tentativa de não serem mortos. Ao exército português apenas restava sair e enfrentar o inimigo corpo a corpo.
António Avilar e o Rouxinol mantinham-se juntos. Dentro e fora da trincheira o chão estava pejado de cadáveres, muitos portugueses, alguns alemães. Corria o rumor de que a infiltração alemã fora possível, porque o corpo de tropas inglesas cedera à avalanche germânica. Mas o momento era de agir, não de pensar. Na destreza de movimentos e na sorte dependia a sobrevivência de cada um.
Também para o António Avilar e para o Rouxinol chegara o momento de saltar o parapeito da sua trincheira. No seio de homens e armas, bailando a dança da morte, o Rouxinol e o António Avilar, como que criando um micró-espaço protegido por um escudo impenetrável feito de amizade, deram um forte abraço e desejaram boa sorte um ao outro. O breve momento mágico terminara e ambos se lançaram para fora da trincheira. O Rouxinol, mal se equilibrara do salto que dera ao sair daquele nefasto corredor, foi alvejado por uma rajada de metralhadora que lhe atravessou o abdómen. Como que empurrado pelo impacto das balas, o seu corpo voltou à trincheira de onde acabara de sair. Tal como muitos outros, o seu corpo envolveu-se com a lama da trincheira, manchando-a de vermelho.
Lá longe, em Aveiro, um barco moliceiro baloiçava ao sabor da ondulação suave da ria. Uma onda maior atingiu a quilha. A água, escorrendo, tomava a forma de lágrimas. O moliceiro chorava.
António Avilar viu bem o seu amigo e confidente ser alvejado e desfalecer. Sabia que nada havia a fazer. Por isso seguiu em frente, lábios crispados, proferindo palavras sem sentido, a arma bem fixa nas mãos, a baioneta pronta a lamber sangue alemão. No seu percurso era acompanhado por uma avalanche de portugueses que em desespero tentavam eliminar a muralha alemã, e pedir auxílio à retaguarda. Pernas extenuadas mas velozes passavam por cima de imensos cadáveres. Por vezes imobilizavam-se numa luta corpo-a-corpo e desfaleciam.
A manhã do dia 09 de Abril de 1918 presenciou, nas planícies da Flandres, o acumular de muitos milhares de mortos. António Avilar mergulhou naquela onda humana. O seu ser diluiu-se naquela efusão de sentimentos e vontades. Aqueles pântanos beberam sangue lusitano. Aqueles pântanos, por onde corria o rio Lys.
Durante três dias os soldados portugueses, sobreviventes da batalha de La Lys, vaguearam pelos campos franceses em busca de auxílio. Durante três dias os franceses negaram-lhes esse auxílio, julgando-os culpados da derrota aliada. Mas finalmente a verdade foi conhecida. Por isso, em 14 de Julho de 1919, as tropas portuguesas sediadas em França, desfilaram orgulhosamente em Paris, sob o Arco do Triunfo, na festa da vitória. António Avilar não se encontrava naquelas fileiras de glória. A sua vontade de justiça, o seu drama, toda a sua verdade se desvanecera nas nuvens de pólvora e gases dos pântanos de Armentiéres...(pág. 57)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

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