Neste natal ainda não me senti tocado por aquele espirito que nos empurra para a alegria de uma árvore de natal ou de um presépio. Ainda não me senti embalado pela alegria que anda no ar, porque ou essa alegria não existe ou eu não tenho capacidade para a detectar. Mas tenho de fazer um esforço, porque, efectivamente, estamos na época natalícia.
E porque, este ano, mais do que em qualquer outro que me lembre na minha vida, e que já leva umas décadas, a solidariedade é mais importante do que nunca, desejaria que o mundo, não sei se tenho peito para um desejo tão grande, mas pelo menos o mundo que gira perto do meu viver, conseguisse realmente ser solidário para que a felicidade florescesse no rosto de todos.
A todos os que, por esse mundo fora, nos têm visitado, e com uma forte incidência nos nossos compatriotas, pois mais do que nunca, precisamos de entender as amarguras uns dos outros e de aproximar-mos os nossos corações, desejo um Natal o mais feliz possível, onde consigamos atingir a verdadeira fraternidade. Que o Menino Jesus entre carinhosamente em vossas casas este Natal!
sexta-feira, 21 de dezembro de 2012
sexta-feira, 7 de dezembro de 2012
NA CURVA DA PICADA
...Homens e
carros iam parando. Álvaro percorria a picada em sentido contrário àquele em
que a coluna seguia. Caminhava com passos rápidos e firmes. A voz que lhe
segredara o aviso, fizera-o sentir tão certo da emboscada, como se ele,
invisível, ali tivesse estado, e cheio de oportunidade constatasse o inimigo
emboscado, verdade absoluta que ia anunciar ao seu comandante.
Todos o observavam cheios de
curiosidade e preocupação. Havia corações que aceleravam o batimento,
espicaçados pela adrenalina. Álvaro ia passando por homens que embora tivessem
vontade de perguntar o que se passava, não arranjavam coragem para o fazer.
Álvaro passou pelo seu amigo, o alferes Mendes. Este perguntou-lhe:
-
O que è que se passa? Porque è que vens para trás?
-
Mantém-te atento- respondeu Álvaro sem parar.
No meio da coluna, já o capitão Rebelo
se mostrava inquieto com a paragem da companhia, sem que para isso tivesse dado
ordem, quando por detrás de uma berliet surgiu Álvaro.
-
Alferes Santa Cruz, o que faz aqui? Qual è o problema
na frente da coluna?- perguntou o capitão Rebelo.
-
Por enquanto não è nenhum meu capitão. Mas mais à
frente temos problemas.
-
Como? Que raio está você p’ra ai a dizer?
-
Meu capitão, gostaria de lhe falar em particular.
-
Você está senil alferes Santa Cruz? Está a ser vítima
de ataque de paludismo?
-
Não meu capitão. O que lhe tenho a dizer è estranho,
mas pode evitar problemas à nossa companhia.
O capitão de imediato ordenou que a
cabina da berliet mais próxima ficasse vazia. Os dois nela entraram, enquanto
dezenas de olhos lhes seguiam os movimentos.
-
Desembuche homem e seja rápido. Não gosto de ver a
coluna aqui parada- dizia o comandante de companhia.
-
Meu capitão, depois daquela curva lá ao fundo temos
uma emboscada à nossa espera- disse Álvaro sem fixar o seu interlocutor.
-
O quê? Que merda è esta Alferes Santa Cruz? Pensa que
estamos a jogar aos « cowboys»? Que raio de oficial...
-
Meu capitão, depois daquela curva, debaixo de um
pequeno montículo está armadilhada uma mina anti carro. Alguns metros à frente
existe um grande tronco caído, atravessado na picada. Estão lá camuflados
muitos turras.
-
Como è que você sabe disso?
-
Não sei explicar, foi como...uma intuição- dizia
Álvaro, demonstrando sinais de embaraço.
-
Porreiro... isto è bestial... agora a guerra faz-se
por palpites ou bruxaria- dizia o capitão Rebelo bamboleando a cabeça.
-
Meu capitão, por favor ouça-me. Se ali não houver nada
pode-me instaurar um processo com o R.D.M.
-
Muito bem alferes Santa Cruz. Tenho-o como um homem de
senso e só por isso acedo a esta palermice. Se no entanto você me fizer cair no
ridículo perante a companhia...
-
Meu capitão, sem pestanejar eu corro esse risco.
-
Vamos lá então.
Ambos saíram da cabina da berliet. O
comandante de companhia chamou os outros dois alferes e disse-lhes:
-
Meus senhores, por adivinhação, pressentimento ou o
raio que parta esta maldita guerra, o vosso colega, alferes Santa Cruz, diz ter
a certeza de que depois daquela curva da picada, lá ao fundo, sob um montículo,
está armadilhada uma mina anti carro e que mais à frente encontra-se um tronco
caído, onde se escondem turras para nos montarem uma emboscada. Vocês vão
transmitir isto aos vossos homens e ai do primeiro que eu ouça rir. Quero dois
ou três atiradores especiais para dispararem sobre o montículo, se houver
montículo, quero os artilheiros prontos com as bazucas e respectivos
municiadores, para dispararem sobre o tronco. Esperemos que não seja um pau de
fósforo. Quero também os morteiros prontos. Desobedecendo às regras, a partir
daqui eu vou à frente da companhia. Se houver montículo e tronco, quero toda a
gente de imediato a disparar. Se não houver nem montículo, nem mina, nem tronco
e nem turras, prepare-se senhor alferes Santa Cruz. Por esta vez reze para que
existam inimigos. Ainda está a tempo de reconsiderar...
-
Não meu capitão, eles estão lá- interrompeu Álvaro.
-
Muito bem, vamos lá então meus senhores- ordenou o
capitão Rebelo...(em continuação, pág. 74- ex. XXI)
in VISITADOS
Novembro/1999
quinta-feira, 1 de novembro de 2012
UMA VIDA POBRE DEMAIS PARA SEGREDOS
...O
mouro cavalgava a trote pela herdade. Era sem dúvida os olhos e os ouvidos do
Barreto Raposo. A sua atenção era quase completamente direccionada para os
trabalhadores de Alfeizerão. Ninguém na sua presença se podia sentir
indiferente. Mantinha o mesmo olhar de aço, um rosto sem expressão nem
indicador dos mínimos sentimentos. O Barreto Raposo valia-se dele para poder
aniquilar à nascença qualquer manifestação de revolta. E o sentimento de
revolta existia, adormecido numa hibernação contínua, mas pronto a explodir ao
menor sinal de ajuda, que tardava a surgir. O Barreto Raposo não era amigo dos
seus assalariados. Não conversava amistosamente com eles, como o fizera o
morgado Vitorino. Não era uma mão pronta a ajudar, como o fora o morgado
Vitorino. O Barreto Raposo era um tirano, um explorador. As gentes de
Alfeizerão sentiam que a presença do Barreto Raposo, na qualidade de
proprietário da herdade, estava apoiada por uma história com muito pouco
sentido. Que necessidade tivera o morgado em vender a herdade? Ao vendê-la, que
necessidade tivera em desaparecer na companhia de um dos filhos e do capataz?
Teria o assalto ao solar tido algum relacionamento com a venda da herdade?
Estaria o Barreto Raposo implicado no assalto? Todas estas perguntas estavam
sem resposta e andavam no ar havia doze anos. Mas o tempo tudo transforma. Até
mesmo os menos resignados ao desaparecimento do morgado, já davam mostras de
aceitarem a situação como definitiva. A imagem da presença forte e sempre bem
saudada do capataz José Chambão, cavalgando por pastos e terras de cultivo, já
praticamente caíra no esquecimento de todos. Iam-se habituando ao deambular
maléfico do novo capataz, o mouro.
Regressava
este de mais uma ronda que fizera aos locais onde os homens suavam o rosto, no
esforço de pedirem o pão à terra. Continuava a ostentar a visão terrífica da
sua cimitarra. Ele era só um contra um monte deles. Ria-se do seu poder.
Conseguira
amedrontá-los a todos. Conseguira também a casa que fora do outro capataz, o
mesmo que ele mandara para o inferno. Habitava nela, na companhia do verruga.
Aquilo sim era vida. Desconfiava que até mesmo o patrão o temia. Dava-lhe tudo
que ele pedisse. Um bom patrão e muitos homens a quem podia provocar medo!
Havia coisa melhor?
Ao
passar no casario trabalhador despertou-lhe a atenção uma casa. Dela chegavam
aos seus ouvidos sons de choro e gargalhadas. Parou o mouro e desceu do cavalo.
Aquela era a casa daquela mulherzinha com cabelo vermelho que andava vestida de
preto. Estava intrigado o mouro. Só conhecera tristeza naquela casa. De repente
tantas gargalhadas?! Alguma coisa haveria. Não que isso prejudicasse a produção
da herdade, mas que o patrão gostava de saber de todas as alegrias e tristezas
dos que trabalhavam para si, lá isso gostava. E ele mouro, aplicava-se a fundo
a descobrir todos os segredos. Essa era uma das formas de ganhar a estima e
consideração do patrão. Mas poucas novidades haviam. A vida daquela gente era
pobre demais para terem tempo para segredos. Mas que naquela casa havia
história, lá isso havia...(em continuação, pág. 107, ex. XXXVII)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
domingo, 21 de outubro de 2012
DOZE ANOS DEPOIS A REVELAÇÃO, A ALEGRIA, A TABERNA DO TI CHICO BENTO
...As crianças
não correrão perigo. Mas não é justo. Desculpe a minha ousadia senhor padre,
mas o que pede não é deste mundo. Como pode um homem conter-se perante tanto
crime? Que mãos poderão deter as minhas próprias mãos, quando perdi tudo na
vida, quando sofri tanto, quando cheirei tanto sangue, tanto homem podre e tudo
por culpa desse maldito Barreto Raposo?
- Tu
António, por momentos recordaste-me o capataz José Chambão. Era essa a opinião
que ele tinha desse Raposo. Caso lhe tivéssemos dado ouvidos, talvez nada disto
tivesse acontecido.
- O capataz
pressentia o perigo.
- É
verdade, agora posso afirmá-lo.
- E não se
esqueça senhor padre, de que temos de ultrapassar a resistência dos dois cães
de guarda do Barreto Raposo, o mouro e o verruga. Esses bichos só entendem uma
maneira de falar.
- Tens
razão. No entanto eu vou tomando algumas medidas que acho necessárias.
Finalmente concederam a Alfeizerão o direito a ter um regedor. Vou ter uma
conversa com ele. Mas antes tenho de libertar a Lucinda daquele sofrimento.
- Cuidado
senhor padre. Ela não pode contar a ninguém.
- Tens
receio? Durante estes doze anos de ocupação ainda não chegou aos ouvidos do
Barreto Raposo que o verdadeiro dono da herdade se cruza todos os dias com ele
e humildemente obedece às suas ordens. Quem guardou tão bem esse segredo, está
à altura de guardar um segundo. Faz os preparativos da acção que eu me hei-de
encarregar dos preliminares. E que Deus nos perdoe e nos proteja. Sabes,
apetece-me celebrar qualquer coisa. Que tal fazermos um brinde ao renascimento
da herdade e do solar Vila de Ló?
- Com
muita, mas mesmo muita vontade eu brindo a essa nova vida - disse António
Avilar.
À pequenina adega foi o padre José Soares
buscar uma esquecida garrafa de vinho do Porto. O pó de alguns anos
transformara aquele vinho num maná do céu. Só um néctar assim era digno de
selar uma aliança como aquela, por uma tão nobre causa.
Cálices
despejados, uma, duas vezes, na despedida o padre José Soares disse a António
Avilar:
- Vieste
aqui em busca de ajuda. Afinal que auxílio levas?
- Todo
senhor padre. O relógio da minha vida recomeçou a andar. É bom sentir-me vivo
outra vez. Obter do senhor padre a compreensão em relação à minha participação
no assalto, tornou-me mais leve. O fardo desapareceu. Ter ganho no senhor um
aliado na missão que aqui me retém, foi uma boa surpresa. Estou capaz de
revolver este mundo e o outro.
- E em
relação ao Bombarral?
- Para o
Bombarral eu morri há quatro anos. A Luísa não merece ser assombrada por um
fantasma. Não tenho condições para ser marido dela, nem de nenhuma outra.
Hei-de aprender a viver com isso. A sua benção senhor padre.
- Deus te
abençoe alma boa.
Já
a noite envolvia Alfeizerão. O padre ficou por momentos parado, a seguir com o
olhar o percurso daquele homem que já não podia divisar, pois a escuridão era
plena. Respirou o ar outonal. Que surpresas Deus revela aos homens. Qual o
sentido de tudo isto? Qual o sentido da existência de cada um de nós? Como era
possível que um desconhecido, protagonista daquela noite maléfica, viesse doze
anos depois a transformar-se na esperança de resgate do que era ainda possível
salvar. Que vida, que grandes privações, que excelente exame estava aquela
alma, aquele António Avilar a fazer!
Assim
reflectia o padre José Soares.
António
Avilar ia feliz. Caminhava de alma cheia. Sempre houvera afinal um ser humano
que lhe estendera os braços. Um homem que sofrera com o pecado da sua vida. E
perdoara-lhe. Agora, mais do que nunca, a consistência da sua vontade era
indestrutível. Chegara ao Alto da Estrada. A taberna do Ti Chico Bento ainda
estava aberta. Ouviam-se vozes e de uma pequenina janela saía uma luz mole,
alternada de sombras. O Ti Zé da Estrada, pela primeira vez em doze anos, ia
visitar o reino de Baco com um sorriso nos lábios...(em continuação, pág. 105- ex. XXXVI)
in QUANDO UM ANJO PECA
Março/1998
domingo, 14 de outubro de 2012
100 ANOS DEPOIS, DE NOVO NO «REVIRALHO»
Hoje, ao
passar numa rua, deparei-me com uma frase pintada numa parede, que perguntava:
PS, CDS, PSD, até quando?
Esta simples
pergunta encerra um número enorme de questões, que decerto já passaram pela
cabeça de muitos de nós, pelo menos nos que têm votado num destes três
partidos, que é o meu caso. Esta pergunta tem toda a razão de ser. Desde o 25
de Abril, apenas houve um pequeno período em que o governo esteve entregue ao
PCP (no tempo do Gonçalvismo). Por isso, todos os erros são atribuídos a estas
três organizações pensantes, que se vai dizendo agora, que foi tudo menos
erros, insinuando-se que as más políticas foram premeditadas, para beneficiar a
nata deste pobre país. Uma coisa é certa- os erros foram cumulativamente colossais, os fundos que vieram da CEE foram colossais, a fiscalização sobre a
aplicação desses fundos foi nenhuma, as riquezas súbitas e enormes diz-se que
são brutais…mas de uma coisa eu tenho a certeza- o país sofre como eu nunca o
vi sofrer, porque havia muito dinheiro que foi sorvido, cujo sofrimento, no
entanto, não é compartilhado (compartilhado… como se tal fosse possível num
país onde grassa o egoísmo), não é sentido por todos, pois há-os aí que, muito
embora vivam num país em crise, mantêm-se incólumes, vivendo num protectorado,
que o sistema, esta dita democracia, criou.
No final do
séc. XIX, caso fosse costume sujar as paredes com inscrições, estiveram criadas
as condições para que, numa qualquer parede deste reino, surgisse uma frase
pintada que poderia perguntar: Regeneradores, Progressistas, até quando?
Estes foram
os dois partidos políticos que, entre 1891 e 1910, governaram Portugal de uma
forma soberba, á semelhança dos de agora, pois então já se está a ver a
qualidade, que, entre si, intercalavam o poder e a oposição. Este período ficou
conhecido para a história como o «Rotativismo». O povo apelidou-o de «O
Reviralho». Terminou, como sabemos, com a queda da monarquia em 1910.
Por vezes a
história repete-se, quando a pouca vergonha começa a ser demais. Resta saber o
que é que poderá cair.
Mas que
estou farto de PS, CDS e PSD, sem dúvida nenhuma que estou. Vejamos que
história nos terá para contar o próximo acto eleitoral para as legislativas.
Estou muito curioso. Mas que voltámos ao reviralho, lá isso voltámos.
quarta-feira, 10 de outubro de 2012
UM CONDE COMO PRÓXIMO DOENTE
...Meu pai, porquê essa cara? –
perguntei eu, intrigado com a expressão do meu pai.
- Ó Joaquim, então, é o Conde D.
Rodrigo Corga.
- Sim, eu sei quem é. Mas porquê essa
cara?
- Tu vais a casa de um conde…
- Não meu pai, eu devo de ir a casa
de um doente. Já é tempo de essas coisas da nobreza irem sendo esquecidas e de
o deixarem de impressionar ainda tanto. Não é rapaz? – perguntei eu,
dirigindo-me ao moço.
- Pois que assim será, sim senhor –
respondeu o rapaz – mas o meu amo precisa do senhor doutor.
- Quem está doente?
- Ele mesmo – disse o jovem.
- Pois aguarda um pouco, que já te
acompanho. Enquanto esperas, vai lá atrás à cozinha das cocheiras, que a ti
Celeste te há-de dar alguma coisa para comeres e beberes e mais à tua mula.
- Obrigado senhor doutor – disse o
rapaz, que levando um sorriso a iluminar-lhe o rosto, logo se dirigiu para as
traseiras da nossa casa, levando a mula pela rédea.
Voltei
para dentro e dirigi-me ao consultório, munindo-me do que me fazia falta para a
consulta de um doente: o estetoscópio, ferramentas cirúrgicas e uma grande
variedade de fármacos, guardados em pequenos frascos de vidro que ia comprando
numa botica de Coimbra, fármacos esses que faziam parte da Farmacopeia Geral do
Reino – a Medicamentorum Sylloge, que fez parte de uma das disciplinas da
matéria médica, na Universidade de Coimbra.
O
meu pai seguiu-me.
- Tens que ir bem ataviado, Joaquim.
Faz a barba e leva a melhor roupa que tiveres.
- Meu pai, não me aborreça com esses
ditos. Se tem algum jeito o que vossemecê está a dizer?!
- Não tem jeito? Não julgues tu que
por o teu pai ser lavrador, não sabe reconhecer quando a vida nos dá uma
oportunidade de avançar. Esta visita que vais fazer ao senhor conde pode ser
muito importante para a tua vida de médico. O senhor conde é um homem com conhecimentos
importantes. Se gostar de ti, pode muito bem fazer com que o teu nome chegue
longe. E é importante que vás bem parecido.
- Meu pai, eu prefiro ver no senhor
conde apenas um doente.
- Quer dizer que tanto se te dá, como
se te deu, que o senhor D. Rodrigo Corga seja o doente que vais ver a seguir.
- Sim, meu pai. È isso mesmo.
- Tu não deves estar bom do miolo. Eu
sei onde queres chegar, porque não sou parvo. Mas segue o conselho de um
ignorante: não ponhas o raio da politica à frente da tua profissão.
- Meu pai, um homem sem convicções é
um trapo, um boneco. O meu pai repare no
que as sua palavras escondem, mesmo sem ter noção disso… que pelo facto do meu
próximo doente ser um conde, que o devo tratar com mais respeito do que trato
os meus outros doentes. É por isso que faz falta o liberalismo. Tem de haver
uma maior igualdade entre os homens.
- Olha Joaquim, eu muito melhor do
que tu conheço essas injustiças de que falaste, porque as tenho sentido na
carne. Toda a vida a fidalguia tentou mangar de mim, mesmo a fidalguia que não
tem um cruzado no bolso. A politica é uma coisa muito ordinária. Basta vermos o
que se tentou fazer há poucos meses com a Abrilada, em que o infante D. Miguel
teve a coragem de se virar contra seu próprio pai e rei. Mas não imagines tu
que, se algum dia o liberalismo vencer, os fidalgos vão acabar. Os fidalgos
nunca acabam. Mesmo que a monarquia venha a ser mais chegada ao povo, nunca irá
botar de fora os seus fidalgos. Os nobres continuarão a ser nobres e ricos, e o
povo continuará a ser povo e pobre. Toma tino nestas palavras que te eu disse.
Faz pela vida Joaquim. Foi para teres uma vida boa que te fiz médico, não para
andares por aí a espalhar ódios pelos fidalgos. Para eles eu pouco valho, mas
isso não acontece contigo, pois tu és médico. Todos os doentes te merecem os
maiores cuidados, mas os fidalgos exigem de ti uma vénia; e não penses que irão
ser os pobres que farão o teu nome chegar longe. Faz a barba a atavia-te como
deve de ser.
E
o meu pai virou-me as costas e foi-se embora...(em continuação, pág. 23- ex. X)
in ALMA DE LIBERAL
Junho/2009
sexta-feira, 5 de outubro de 2012
PELOS CAMINHOS PRATICANDO A MEDICINA
...Fiz o meu exame final em Maio de
1823. Era doutor. Munido de canudo na mão, rumei à casa paterna. Malhal de Sula
aguardava-me em apoteose. Os meus pais, com um sorriso de orelha a orelha,
rodeados pelos homens e mulheres que trabalhavam por sua conta, receberam-me
com imensa alegria e inchados de orgulho. O seu filho era o primeiro doutor
produzido naquelas bandas. A partir daquele momento Malhal de Sula deixara de
ser apenas local de fortes vinhedos. Passara também a ser a residência de um
médico, do único médico existente em muitos quilómetros em redor.
Na
dependência mais recatada da casa, que passou a ser a mais nobre, o meu pai
montou um consultório para o meu futuro trabalho. Mobília de excelente
carvalho, a estrear, constituída por uma enorme mesa pintada de preto, uma
cadeira de costas altas, duas cadeiras de braços, destinadas aos pacientes, uma
pequena cama para consultas mais aprofundadas e um enorme candelabro de cobre,
onde podiam arder em simultâneo quinze velas. O consultório possuía uma enorme
janela, que enchia de claridade natural toda a dependência, virada para um
pequeno mas belo jardim, pintado pelas cores de várias espécies de flores, obra
a que o meu pai se deu ao trabalho de criar, na expectativa de assim emprestar
ao consultório uma maior dignidade. Fora proibido, por lei imposta pelo meu pai,
que pelas proximidades do jardim passassem carros de bois e gente palradora,
evitando assim que o sossego, que àquele espaço era devido, fosse importunado.
E
os meus doentes, lentamente, começaram a chegar. Eram filhos e filhas de outros
lavradores ricos, filhos e filhas de um ou outro fidalgo que existiam na
Mealhada, no Luso e até da Pampilhosa. Mas ao final de alguns meses dei-me
conta de que nenhuma gente pobre do povo eu tivera como paciente. Era verdade
que não iriam ser os pobres do povo que me fariam ganhar dinheiro. Mas, naquela
época, ser médico representava ser acérrimo defensor da dignidade humana… numa
altura em que a dignidade e a vida de um homem podiam apenas depender da
palavra de um outro homem.
Com
tanta pobreza, fome e tanta podridão que pela Serra do Buçaco escorrera, após a
batalha, era certo que a doença germinava em cada canto. Por essa razão resolvi
que a minha actividade clínica deixaria de se restringir ao meu consultório.
Ir-me-ia dar a conhecer ás gentes que me rodeavam e intervir, se assim achasse
necessário. Falei com o meu pai sobre a minha resolução. A principio, a ideia
de atender doentes fora do consultório, não lhe pareceu bem. Que diabo, um
médico era um médico! Os doentes tinham que o procurar e não ao contrário. Mas
depois de lhe explicar que o meu conceito da prática da medicina se baseava na
obrigação moral de actuar onde fizesse falta, e não de fazer falta apenas a
alguns, o meu pai compreendeu o meu ponto de vista e concordou comigo. Ele
sabia que por aquelas terras existia muita gente a sofrer de graves doenças. E
assim, um dia se me apresentou com uma bonita caleche, puxada por um garboso
cavalo.
Em
1824 já o nome do doutor Joaquim Passos Lopes corria de boca em boca. Tinha eu
então vinte e quatro anos de idade.
Foi
num dia quente de Agosto desse ano, que a Malhal de Sula chegou um criado.
Viera montado numa mula. Eu encontrava-me no consultório a trabalhar numa lista
de doentes, que do mesmo lugarejo apresentavam febres altas e diarreia, quando
o meu pai me bateu à porta.
- Joaquim, sou eu.
- Meu pai, abra a porta. Nunca mais
perde a mania dessas cerimónias – disse eu, aborrecido, por sentir no meu pai
uma atitude de servilismo sempre que se dirigia ao consultório.
O
meu pai abriu a porta e disse:
- É que está lá fora um criado a
preguntar por ti.
- Um criado? Criado de quem?
- Não o entendi bem. Fala muito
depressa. Os bofos quase que lhe saiam pela boca. Vai lá e vê o que ele quer.
Levantei-me
da minha mesa de trabalho e fui à porta da entrada. A porta dava para um
alpendre com uma pequena escadaria. No final dos degraus encontrava-se um rapaz
dos seus quinze anos, com ar muito atrapalhado, segurando com as duas mãos o
barrete que lhe tapara a cabeça.
- Então rapaz, o que é que há? –
perguntei eu.
- Eu venho em demanda do médico,
senhor doutor Joaquim Lopes.
- Sou eu mesmo. Vens de onde?
- Venho do Luso, senhor doutor, a
mando de meu amo.
- E quem é o teu amo?
- O senhor Conde de Cértima.
O
meu pai olhou para mim com uma feição muito séria...(em continuação, pág. 20- ex. IX)
in ALMA DE LIBERAL
Junho/2009
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