domingo, 7 de abril de 2013

REFLEXÕES DE LIBERDADE


...A casa teria cerca de dez metros de altura, por quinze de largura. O telhado era piramidal. No topo da casa existiam três pequenas janelas, no que seria o sótão. Apresentava ainda duas fiadas de janelas, com quatro janelas cada e uma porta ao centro, que dava para uma bonita varanda. No piso térreo uma enorme porta, ladeada por duas grandes janelas. A casa estava envolta por uma pequena floresta de carvalhos e acácias. Em frente da casa existia um enorme jardim, que formava pequenas estradas pelo seu interior, sendo que a mais larga levava directamente à porta da casa. Ao ver a grandiosidade daquele jardim, eu sorri, pois lembrei-me do jardim que o meu pai criara para trazer mais conforto e privacidade ao meu consultório. Comparado com o jardim do Conde de Cértima, o jardim do meu pai era insignificante… em tamanho. Mas era muito mais poderoso do que o jardim que agora aos meus olhos se revelava, pois o jardim do meu pai não fora criado em função de um brasão mas em função do amor a um filho. Não tinha a nobreza dum título fidalgo, mas tinha a nobreza do coração de um pai, que sendo do povo e que por isso tinha sentido o despeito que a nobreza por si sentia, tivera a nobreza de aconselhar o filho a saber viver, não demonstrando azedume e desprezo pela fidalguia.
         Ao entrar no enorme jardim, o jovem Adelino se me adiantou e foi avisar que eu chegava. Descia eu da caleche, quando a enorme porta se abriu, surgindo uma senhora.
- Senhor doutor Joaquim Lopes – disse ela, dirigindo-se a mim.
- D. Maria do Carmo, presumo – retorqui eu, com um sorriso.
- Já vi que o Adelino não se calou na jornada – disse ela com um sorriso.
- É um rapaz simpático – disse eu, estendendo a mão direita à governanta do Conde de Cértima.
- Senhor Doutor, faça favor de entrar.
         Reparei que o Adelino levava o meu cavalo e a caleche para as traseiras da casa. Consultei o meu relógio de bolso que o meu pai me oferecera aquando da minha formatura. Eram quatro da tarde.
         Entrei naquela mansão, seguindo a governanta Maria do Carmo. Ela fez-me aguardar numa belíssima sala de espera. Tudo ali transmitia riqueza. Três enormes cadeirões, dispostos ao centro da sala, rodeando uma delicada mesa coberta com uma toalha de puro linho, alva como a neve. Uma estante exibia uma considerável colecção de livros. Do outro lado da sala, uma outra mesa apresentava uma boa quantidade de garrafas de aguardente velha e vinho do Porto. Ao lado, existiam seis copos de puro cristal. Três, enormes, bojudos, próprios para a aguardente velha. Outros três, muito mais pequenos, para ser servido o vinho do Porto. Ao lado da mesa das bebidas, um sumptuoso relógio de parede, com a caixa de madeira e o vidro artisticamente trabalhados. No seu permanente andamento de balancé, o pêndulo marcava quatro e um quarto. Quando me aproximava da estante para ler os títulos inscritos nas lombadas dos livros, surgiu de novo a governanta.
- Senhor doutor, tenha a fineza de me seguir. O senhor conde aguarda-o nos seus aposentos.
         Mais uma vez segui a governanta. Era uma senhora de porte fino, aparentando quarenta a quarenta e cinco anos de idade, toda vestida de preto, de olhar cândido, mas triste. Este seu semblante estava em sintonia com a situação do reino, pois os tempos que se viviam, mais propriamente os vinte e quatro anos que levava o século dezanove, eram profícuos em produzir semblantes como o da governanta. As invasões francesas haviam trazido muita fome e morte; depois, o reino, em vez de se unir perante a catastrófica intervenção francesa, para assim reunir forças e erguer-se das cinzas, fez precisamente o contrário. O invasor reprimira, mas paradoxalmente, trouxera com ele uma semente de esperança para o povo. Ao germinar, essa semente, que em muito interferia com os direitos instituídos da nobreza, provocou a enorme discórdia. O reino encontrara o rumo certo, mas essa estrada era muito sinuosa e perigosa, pelo que fazia com que, principalmente o povo, muito sofresse para seguir em frente.
         A governanta abriu uma enorme porta, fez sinal para eu entrar e eu entrei. Ouvi a porta fechar-se atrás de mim. À minha frente encontrava-se uma grande cama, com a cabeceira constituída por uma profusão impressionante de rendilhados. Grande mestre, o carpinteiro que fizera aquela obra. E na cama lá se encontrava o primeiro conde que eu via na minha vida. Pude verificar que tanto os pobres como os ricos, na doença, apresentavam o mesmo olhar mortiço, os rostos retorcidos pelos esgares de dor. Se retirássemos toda a demonstração de riqueza que envolvia aquele homem, e apenas ficasse o rosto, no vazio, concluir-se-ia que a carne nada tem de nobre. A carne é precisamente igual, tanto nos fidalgos como nos plebeus. O que será então que a nobreza influencia? A mente?...(em continuação, pág. 28- ex.  XII)

in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009 

domingo, 31 de março de 2013

EM 1506, FOGUEIRAS NO ROSSIO EM LISBOA




Terminei esta semana a leitura do romance «O Último Cabalista de Lisboa». Não o poderia ter feito em melhor altura do que esta- a Páscoa, já que o enredo do livro se passa na páscoa de 1506.
Um romance baseado em factos reais, o que faz com que a realidade da nossa história seja, por vezes, como neste caso, bastante negra, e numa altura, no momentos dos nossos 873 anos de história em que, como povo, subimos mais alto.
Um daqueles momentos que a história não se preocupa nada, mesmo nada, que não seja ensinado nos bancos da escola.
Aprendi o que foram os cristãos novos. Com os anos aprendi que as nossas alheiras são um legado dos cristãos novos portugueses, para iludirem os cristãos velhos de que comiam, como eles, carne de porco, enchidos de porco. Mas mais nada me foi ensinado. Não aprendi o que aconteceu nessa tenebrosa páscoa de 1506, em Lisboa, muito embora me tenham chegado alguns rumores pelos tempos fora.
Com a leitura deste livro, da autoria de um verdadeiro mestre- Richard Zimler, entrei profundamente nesses acontecimentos horríveis.
Páscoa de 1506- grassa em Lisboa uma seca severa, acompanhada por mais um surto de peste. O povo de Lisboa, instigado então pelos frades dominicanos, acusa os judeus de todos os males, e numa loucura colectiva, levam á fogueira cerca de 2000 judeus cristãos novos- os marranos.
Quando pela primeira vez, no livro, li este vocábulo- marrano- parei um momento. Este é um termo que eu já utilizei, quando queria dizer que alguém se não tinha portado em condições. Lembro-me de, na minha infância, quando alguém brincava com uma criança, provocando-a quase ás lágrimas, de se repreender essa pessoa, dizendo: «não lhe faças judiarias». Portanto, ainda há poucos anos, a nossa memória colectiva se encontrava influenciada com as memórias destes dias…e preservava esse sentimento de repulsa em relação aos judeus.
Em todo o romance está sempre bem presente a sombra da inquisição, muito embora o santo ofício somente trinta anos depois seria instituído em Portugal.
Aos que estão interessados em saber que até os grandes povos podem ter momentos extremamente negativos, este livro será de leitura obrigatória.
E nós, Portugueses, mesmo com políticos fracos, não enfraquecemos, e como sempre fomos, continuamos a ser um grande povo.

sábado, 16 de março de 2013

A CAMINHO DOS PADRÕES DO ABSOLUTISMO





...Fiquei sem palavras. Nunca tinha ouvido o meu pai falar assim. O meu pai era um doutor da vida. Fiquei orgulhoso dele. O meu pai tinha razão no que dizia. Toda a vida se sentira humilhado pela nobreza. Ao fazer de mim médico, não me fazia nobre, mas proporcionava-me os requisitos para ser respeitado pelos nobres. O discurso do meu pai refreou os meus ímpetos liberais, pois eu sabia que, muito embora o meu pai fosse um convicto liberal, não que soubesse algo sobre a carta constitucional de 1822, mas apenas porque aspirava a mais liberdade, a experiência da vida dizia-lhe que as classes dominantes nunca iriam ser tão estúpidas, que se despojassem dos seus direitos em prol do povo, pelo que, eu, que através da minha actividade clínica poderia tirar proveitos dessas mesmas classes dominantes, deveria ser suficientemente inteligente para, não deixando de ser liberal, ter consciência de que a mudança politica que se operava no reino, estava a ser feita pela própria classe dominante. O povo limitava-se a seguir os acontecimentos. Mas, e se o povo resolvesse ser ele a tomar a rédea desses mesmos acontecimentos?
         Olhei-me ao espelho do consultório. Tinha um bom aspecto. As minhas espessas suíças até ao meio das faces, faziam-me parecer mais velho, mas talvez isso fosse conveniente. Acabei por seguir o conselho do meu pai e ataviei-me em condições.
         Levei hora e meia a percorrer a distância que separava Malhal de Sula da povoação do Luso, onde o Conde de Cértima tinha construído a sua casa senhorial.
         Eu, viajando na minha charrete e o jovem criado, que se chamava Adelino, montado na mula, lá fomos calcorreando os caminhos por entre espessos pinhais. O sol abrasador de Agosto ensopava-nos em suor. Para tornar a viagem menos monótona, fui conversando com o jovem criado, que me falou sobre o seu mundo: a casa onde servia.
         D. Rodrigo Corga tinha cerca de sessenta anos de idade, um pouco mais velho do que o meu pai. Era viúvo e tinha dois filhos: a Senhora D. Maria Clara Corga e o filho mais novo, o Senhor Pedro Corga. Na casa havia uma governanta, a Maria do Carmo, que directamente planeava as tarefas de toda a criadagem.
         Eu, algumas vezes ouvira falar no Conde de Cértima, mas desconhecia a existência dos seus filhos. Seriam pessoas para a minha idade, certamente.
         Decerto este Pedro Corga pouco sabia ler, ou não o saberia mesmo. Mas tinha o futuro assegurado pelo título de nobreza que o seu pai detinha. No seio do povo existiam poucos, mas já existiam alguns homens que conheciam o poder das letras; no entanto, não era esse o facto que os impediria de muito terem de batalhar na sua existência para darem alguma dignidade à sua vida. Em contrapartida, os nobres, ignorantes que fossem, tinham como certa a dignidade na vida, pelo simples facto de terem nascido nobres. Este era um dos padrões do absolutismo, padrões esses que o liberalismo tentava contrariar. Eu sabia que o meu pai dissera o que dissera não por convicção, antes por precaução.
         Finalmente o jovem criado apontou para o sítio onde se localizava a residência do Conde de Cértima. Era uma enorme casa com três fiadas de janelas, em arquitectura setecentista. Reparei que por cima da porta principal existia um brasão de armas: na vertical uma espada, com a ponta virada para cima, ladeada por uma oliveira. Em baixo, a toda a largura do brasão, representava-se o que parecia ser um rio, alusão provável ao rio Cértima, que banhava aquela zona. Nunca soube, nem me preocupei em saber, o significado da espada e da oliveira...(em continuação, pág. 25- ex. XI)
in ALMA DE LIBERAL

Junho/2009

quarta-feira, 13 de março de 2013

LEMBRANÇAS DA IGREJA DE S. MIGUEL EM AVEIRO


Hoje, neste passeio de Domingo, percorremos a Rua Direita, onde os nossos passos agora se podem expandir livremente, sem a preocupação de trânsito automóvel, e vamos de novo em direcção à Ponte Praça. Mas, á esquina do robusto edifício da Câmara Municipal, vemos espreitar á nossa esquerda a Praça da República. E como que respondendo a um apelo da história, somos atraídos para junto da estátua do ilustre José Estevão.
Claro, a estátua erigida em memória de um aveirense ilustre, que viveu num período conturbado da nossa história…é deste homem que nos fala o dito apelo, não é?
Não, não é! Pelo menos por hoje não é.
Diz-nos a história, nos apontamentos históricos de Rangel de Quadros, que no dia 20 de Janeiro de 1524 D. João III, por ocasião de um surto de peste, ofereceu a Aveiro uma relíquia do mártir S. Sebastião. A oferta desta relíquia deu origem a uma procissão, a procissão de S. Sebastião, que se começou a realizar em todos os dias 20 de Janeiro, dia da oferta da relíquia.
A relíquia ficou guardada num primoroso cofre da Igreja Matriz de S. Miguel, que tinha três chaves, cada uma delas guardada pelo pároco da igreja, pelo juiz de fora e pelo procurador da vila.
Perguntar-me-iam: mas a igreja matriz de Aveiro não é a Sé?
É…agora- responderia eu.
Ainda com a dúvida a assolar a mente, voltar-me-iam a perguntar: Igreja de S. Miguel? Onde fica, que não conheço?
A memória é poderosa. Faz com que o que se perdeu no tempo continue vivo ou edificado, como se nunca tivesse deixado de existir. E a memória da história é profunda.
Na realidade, a que foi, em Aveiro, a Igreja Matriz de S. Miguel, existiu na área onde agora se levanta a estátua a José Estevão. Por isso o apelo da história, de há pouco, era tão forte.
A Igreja de S. Miguel poderia bem ser um dos monumentos mais antigos de Aveiro, se não mesmo o mais antigo, pois os documentos fazem menção a ela em 1209.
Foi demolida em 1835 por vontade do regime liberal, implementado em Portugal no ano anterior, em 16 de Maio de 1834, depois de uma sangrenta guerra civil. Regime liberal, que em 1828 ficou em dívida para com Aveiro. Mas isso são contas de um outro rosário, a abordar oportunamente.
Com a demolição da Igreja de S. Miguel, foi interrompida a celebração da oferta da relíquia de S. Sebastião através de procissão anual, que veio a ser retomada em 1857, saindo então a procissão da capela de S. João Batista, no Rossio, capela que também acabou por ser demolida em 1911.
Em relação á relíquia de S. Sebastião, tão ciosamente guardada no altar-mor da Igreja de S. Miguel, não nos foi possível, nos nossos parcos conhecimentos, encontrar informação que nos elucide sobre o seu destino.
Decerto que no sítio onde um dia, durante alguns séculos, a Igreja de S. Miguel ocupou espaço ao espaço, se encontram ainda milhentos átomos da sua estrutura. Talvez por isso a Rádio «ÁS» seja uma rádio simpática e aberta à comunidade, pois que o seu estúdio ocupa espaço ao mesmo espaço que um dia a Igreja de S. Miguel ocupou.
Igreja de S. Miguel, uma memória de Aveiro que apenas existe na vontade dos homens em não querer esquecer.


quinta-feira, 7 de março de 2013

UM EMISSÁRIO DE MASSIFTONRÁ, EM TEBAS


Há muito que o sol se pusera. O templo de Amon-Rá, em Tebas, estava profundamente silencioso. Embora a escuridão preenche-se todos os recantos do templo, das suas pedras de granito ainda se exalava algum calor, absorvido pela intensa acção do deus astro, durante o tempo em que iluminara a vida dos homens, e actuara beneficamente nas sementes enterradas na terra enriquecida pela recente cheia do rio Nilo.
Do exterior dos muros do templo chegavam ténues sons, indícios de que a vida dos homens decorria na sua normalidade, embora naquele momento fosse uma vida com muito pouca actividade. No céu, a lua, rodeada por incontáveis estrelas, irradiava a sua luz prateada. Vista sob o silêncio do lajedo do templo, era uma visão magnífica. O silêncio era de tal forma profundo, que deixava ouvir o suave murmurejar da água do Nilo, que meigamente enchia o tanque sagrado.
Masahemba dormia no catre que lhe servia de cama. Por isso não deu conta de que uma forma fortuita penetrara os muros do templo, e dirigia-se para ele. A forma deslocava-se rapidamente, tendo-se detido ao chegar junto ao Sumo-Sacerdote. Alguma força superior entrou em contacto com a mente de Masahemba, pelo que o Sumo-Sacerdote acordou. Acordou e assustou-se, pois junto a si encontrava-se uma criança que o fitava intensamente. Num impulso, Masahemba ergueu o tronco, ficando sentado. Na escuridão, a criança, irradiava uma espécie de auréola, pelo que se tornava bem visível. Masahemba não tinha a certeza se estava acordado. Aquela visão poderia bem fazer parte de um sonho.
- Que fazes aqui, rapazinho?- perguntou o Sumo-Sacerdote.
- Levanta-te- disse o rapazinho, ignorando a pergunta que lhe fora feita.
- Como conseguiste aqui entrar?- perguntou Masahemba, ignorando, por seu turno, a ordem que lhe fora dada.
- Levanta-te Masahemba- ordenou de novo o rapazinho.
- Como é que sabes o meu nome, rapazinho?
- Eu não sou um rapazinho.
- Então fazes parte de um sonho, porque tens toda a aparência de um rapazinho.
- Dizes bem, aparência, porque esta forma é apenas uma ilusão de óptica. Segundo as leis da MassiftonRá, tu, como mortal, nunca devias vir a saber da minha existência. Mas dadas as circunstâncias excepcionais…
- Espera aí… espera aí… o que é isso de MassiftonRá ?-  perguntou o Sumo Sacerdote bastante intrigado.
- Eu venho em missão urgente…
- Explica-te, danado de garoto- disse Masahemba, interrompendo o rapazinho, ao mesmo tempo que se punha de pé.
- MassiftonRá é o local escolhido pelos deuses para viverem. Em MassiftonRá, os deuses reunidos formam o conselho. Eu sou um obreiro de MassiftonRá. A mim e aos meus irmãos obreiros os deuses chamam-nos siftos. Na minha forma original sou um peixe, um peixe do rio Nilo, o qual alberga nas profundezas das suas águas o local divino de MassiftonRá. A tua curiosidade está agora saciada?
- Bem… sim… não sei se…
- Vamo-nos deixar de evasivas. Tu, na qualidade de Sumo Sacerdote de Amon-Rá, tens a obrigação de rapidamente assimilares esta informação, de a compreenderes e de a guardares em profundo sigilo...(em continuação, pág. 45, ex. XV)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Março/2003

sábado, 2 de março de 2013

O ACTO INICIÁTICO II


Não sei quantas serão as pessoas que deambulam pelos blogues, que tenham marcado presença nas fabulosas manifestações que se derramaram pelas ruas deste nosso maravilhoso país, no dia 25 de Abril de 1974 e seguintes. Eu sou uma delas. Com a inesgotável energia dos meus 18 anos, gritei os slogans de então, cantei a Grândola Vila Morena, até á exaustão. E depois de me sentir esgotado, se me tivessem pedido para ir gritar e cantar de novo, imediatamente o faria, revigorado, porque a expressão da liberdade era urgente e me rompia a pele.
Passaram-se 39 anos e, infelizmente, vejo o meu povo na urgência não da liberdade, mas da justiça, que bem medidas as coisas vai dar ao mesmo, pois uma sociedade que não é justa não é uma sociedade livre nem democrática. Hoje o povo foi espontaneamente para as ruas, como o fez em Setembro último, como o fez em 1974. E como há 39 anos, a Grândola Vila Morena voltou a ser sentida como a expressão máxima da intervenção. A memória de Zeca Afonso percorreu hoje Portugal, de lés-a-lés. E os slogans estão também a regressar: o povo unido jamais será vencido, o povo é quem mais ordena. Penso que não faltará muito e gritar-se-á também: soldado, amigo, o povo está contigo.
Segui atentamente as notícias. Impressionou-me o depoimento de uma manifestante, moça a rondar os 30 anos, dizendo que é professora, está desempregada há dois anos, já não recebe qualquer subsídio, e que a base da sua sobrevivência é a reforma da mãe, de 500 euros. Quantas vezes nem dinheiro tem para lanchar.
Há 39 anos que somos governados apenas por três forças políticas. E sistematicamente que têm alternado o poder com a oposição. Afirmam que têm implementado o progresso e a democracia. Aqui chegados, todos, todos nós, temos a oportunidade de avaliar onde é que o progresso e a democracia foram implementados, e de que forma é que esse progresso e essa democracia influenciaram a justiça social.
Estou deveras curioso para ver qual o resultado do voto do povo, já nas próximas eleições autárquicas, mas, fundamentalmente, nas próximas legislativas.
Isto precisa de um trambolhão, venha ele na forma que vier. O necessário é que traga algo de diferente. Porque, bem podemos manifestar a nossa indignação nas ruas, que, se nas urnas continuarmos com o nosso sentido de voto inalterável, tornar-nos-emos tão responsáveis como a nossa excelente rapaziada que diz chamar-se classe política.
Bravos Lusitanos, triste a vossa sina!

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A SENTENÇA DE AKHENATON


...Depois da partida do deus Horus, o faraó, tomado de uma profunda ira, alvoroçou todo o palácio, ordenando que toda a gente estivesse bem acordada. Pressentindo profundas mudanças no humor do faraó, Nefertiti e as aias quedaram-se num respeitoso silêncio. O faraó enviava mensageiros- que viessem o vizir de Tebas, os hatiuás e os escribas. A todos o faraó tinha determinações a dar; e passado algum tempo, do meio da noite começaram a afluir ao palácio real os altos funcionários do reino, que ainda um tanto ou quanto estremunhados, questionavam as razões que levariam o faraó a uma tão inesperada reunião.
     Sentados no chão, de pernas cruzadas, formando um semi-circulo em redor do imponente trono do faraó, formado por uma escadaria composta por dez degraus, encimada por um patamar enorme, forrado de peles de leopardo, onde estava colocado o cadeirão real, cravejado de ouro e pedras preciosas, os altos funcionários aguardavam pelas palavras de Amenhotep, o quarto. Este, levantou-se do seu trono e com olhar chamejante fixou os seus súbditos. Em silêncio desceu a escadaria que o conduzia até ao chão; depois, firmando o vácuo, disse:
- O Egipto tem uma nova rainha. Se não o sabíeis, ficais agora a sabê-lo; mas espero que esta noticia já não seja novidade para vós, pois como altos servidores do faraó, devereis estar atentos a tudo o que de bom e de mau se passa na terra egípcia.
     Mas já todos o sabiam, pois muitos olhos haviam visto o faraó a levar uma sacerdotisa do templo de Amon-Rá.
- O vosso faraó- continuou Amenhotep, o quarto- no entanto pagou um preço alto pela conquista da sua rainha. Perdi a bênção dos deuses! Mas não fiquem deveras preocupados, porque eu estou calmo e ciente da minha razão. Eu sou faraó! Eu sou o Egipto! O faraó necessita de descendência, como tal é urgente haver uma rainha. O faraó, porque vai ser pai da descendência real do Egipto, tem por direito escolher para rainha a mulher mais nobre e pura que encontrar; e a minha escolha recaiu sobre uma sacerdotisa de Amon-Rá. O deus supremo não gostou da minha escolha. O deus supremo sentiu-se ofendido por eu ter escolhido uma sua sacerdotisa para rainha do Egipto. Eu coloco então a seguinte questão: terá a ofensa de Amon-Rá legitimidade? Tem Amon-Rá o direito de se opor à eleição de uma sua sacerdotisa para rainha do Egipto? Não, vos respondo eu!! Onde estão, em Amon-Rá, os espíritos dos faraós que compuseram as dinastias anteriores a nós? É com uma atitude destas que o deus supremo revela o seu respeito pelas dinastias que nos legaram o maravilhoso Egipto que hoje possuímos? Não!! E sabeis porquê? Porque no âmago da sua essência, Amon-Rá não é egípcio!! Podeis perguntar-me se eu tenho provas?! Que melhor prova é senão o facto de Amon-Rá ter eleito para seu Sumo-Sacerdote um estrangeiro?! Como pode ser possível que um não egípcio ocupe o mais alto cargo religioso do Egipto? Só assim se compreende que Amon-Rá não tenha ficado contente com a eleição de uma sua sacerdotisa para rainha, mãe da futura descendência egípcia. Em mim estão condensados todos os poderes dos deuses, pois eu sou deus na terra. Tenho a capacidade mental, espiritual, psicológica e politica de Amon-Rá. E tenho algo que ele não tem… eu sou leal à nação das pirâmides, sou leal ao imenso e magnífico Nilo. Eu tenho de ser o Egipto, porque sou faraó, mas principalmente porque sou egípcio. Assim, determino que a partir deste momento fiquem proibidos quaisquer manifestações religiosas em honra de Amon. O templo de Tebas vai ser encerrado, e o seu Sumo-Sacerdote, o estrangeiro Masahemba, passa a ser considerado prisioneiro, como tal, transformado em escravo. O deus supremo volta a ser Aton, o magnânimo deus da desaparecida Mênfis. Qualquer culto a Amon-Rá será punido com o chicote, e se as manifestações se mantiverem, a punição poderá ir até à pena de morte. A partir deste momento o faraó passa a chamar-se Akhenaton, faraó ao serviço do deus Aton. Que o sol ilumine Lucsor e Karnak somente na bênção de Aton. Irei fundar uma cidade a que chamarei Amarna, como tributo a Aton; e enquanto lá não puder viver, terei o meu próprio tabernáculo a Aton, aqui no meu palácio. Vizir de Tebas, tens em algum escriba as qualidades necessárias para poder desenvolver a prática de sumo-sacerdote?
- Sim, divino senhor. O escriba Efreiménus. Estudou e praticou a filosofia e espiritualidade dos deuses.
- Pois que Efreiménus passe a viver na casa do faraó, e canalize as suas orações para Aton. Posto isto fazei com que as determinações do faraó Akhenaton sejam cumpridas. E logo pela manhã quero a meus pés o estrangeiro Masahemba.
     O palácio esvaziou-se. Os altos funcionários não sabiam o que dizer. Não houve qualquer oportunidade a que se pronunciassem; e sentiram que se o fizessem não sairiam dali vivos. O faraó não estava a actuar bem… mas era o faraó. E as suas cabeças respondiam pelo não cumprimento das suas determinações. Os altos funcionários iriam fazer cumprir a determinação de proibir o culto a Amon-Rá. Mas estavam dispostos, no mais secreto dos seus seres, honrar Amon com as suas preces. Dissesse o faraó o que dissesse, Amon-Rá era o Egipto. Que Amon-Rá velasse pela terra egípcia e destronasse aquele faraó o quanto antes...(em continuação, pág. 43, ex. XIV)

in  A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005