quarta-feira, 22 de julho de 2009

NA EMOÇÃO DA ESCRITA I (excertos)

Houve um silêncio entre os dois homens. Outros companheiros dormitavam, agarrados às suas espingardas de “baioneta calada”. Outros ainda admiravam o céu estrelado e alguns outros conversavam entre si.
- Tu és voluntário? - perguntou o Rouxinol de rosto carregado de incredulidade.
- É verdade. Estou “nas Franças” porque quero.
- És casado?
- Sou, sou casado com a minha Luísa. Lá está no Bombarral à espera do meu regresso. Fui feliz em me ter casado com ela.
- Posso-te perguntar porque motivo vieste provar a lama francesa?
- Podes, mas é uma história comprida.
- Não faz mal. Não tenho mais nada para fazer. Os Alemães ali ao lado também gostam do descanso.
Ambos riram.
- Está bem Rouxinol. Faz-me mesmo bem desabafar. Ainda te lembras dos tempos da monarquia?
- Lembro-me de alguma coisa. Quando chegou a república eu tinha doze anos.
- Pois eu lembro-me muito bem. Os oito anos que te levo de avanço deram-me oportunidade de ter consciência das muitas injustiças que se faziam ao povo. E ouvindo eu falar da república, como um ideal novo que trazia a justiça onde ela fazia falta, logo me tornei republicano. O problema foi ter dado ouvidos a quem não devia.
- Algum mau republicano - exclamou o Rouxinol.
- Nem mau nem bom. Antes um oportunista, um bandido que se aproveitou da boa fé das pessoas simples e da sua vontade em quererem melhorar a vida. Esse patife chama-se Barreto Raposo. Era um rico negociante de gado lá no Bombarral. Quando se deu a república disse duas ou três coisas que me pareceram acertadas e me incendiaram os sentimentos da revolta. A mim e a alguns outros homens lá da terra. Nós bem que sabíamos que ele não tinha boa fama, mas levados pelo ardor da revolução esquecemos tudo e decidimos segui-lo, esperançados que ele nos iria dar o céu.
- E não deu?
- É como vês Rouxinol. Este sítio onde estamos agora é o céu que eu ganhei. Esse Raposo dos infernos disse-nos que em Alfeizerão, uma terra a doze léguas do Bombarral, existia uma rica herdade, propriedade de um morgado. Convenceu-nos de que com a chegada da república os monárquicos não tinham direitos às terras e que eram obrigados a vendê-las àqueles, que com posses, aderiam à república. Disse-nos que tudo estava tratado e que era só chegar à herdade do tal morgado, assinar uns papéis, porque o negócio já estava apalavrado. E assim, três noites depois da revolta de 05 de Outubro, vi-me metido num grupo de dez homens a caminho de Alfeizerão.
- Queres dizer então que foram de noite.
- Sim, fomos de noite.
- E porque razão não foram de dia?
- Boa pergunta Rouxinol. Eu deveria ter feito essa mesma pergunta mas infelizmente não a fiz. Afinal, se as intenções eram boas, se não havia ali nada a esconder, bem que nos podíamos ter poupado a uma viagem daquelas tão incómoda. Doze léguas na garupa de um cavalo e ainda por cima de noite, tem que se lhe diga.
- Mas chegaram a entrar na tal herdade?
- Para mal dos meus pecados, entrámos. Assim que lá chegámos fiquei a saber que me tinha metido com um bandido dos da pior espécie.
- E porque razão não te vieste embora?
- Não podia. No grupo dos dez homens, além dele, seguiam dois indivíduos que só olhar para eles parecia que víamos o diabo. Se eu dissesse que me vinha embora caía ali redondo.
- Mas o que aconteceu para te sentires assim tão mal?
- O maldito do Barreto Raposo, ainda mal tinha posto os pés no chão, já corria para a porta de entrada da casa do morgado como um louco, a ruminar qualquer coisa entre dentes. Logo os dois crápulas que tinha ao seu serviço o ajudaram. Num ápice arrombaram a porta ao homem. Eu fiquei perdido. Nem me mexi de cima do cavalo. Nesse momento percebi que ali não havia nada de legal. Eu estava simplesmente a participar num assalto. O malandro troou os ares com o seu vozeirão, a ordenar-nos que revistássemos a casa. Foi de certo o pior momento da minha vida...
- Ainda pior do que este?
- Muito pior Rouxinol. Aqui corro o risco de morte, mas em defesa da minha pátria. É consolador sentir isso. Naquela altura, eu não agia em benefício de ninguém. Era um fora da lei, embora soubéssemos que a lei era pouca ou nenhuma nos tempos que corriam. Por isso o malvado do Raposo sentia-se à vontade. Ao entrar daquela maneira, naquela casa, tive vergonha de mim mesmo. Entrei porque fui cobarde.
- Querer proteger a vida é uma coisa natural!
- Pois é. Mas quando se protege a nossa vida, para acabar com a vida dos outros, e ainda por cima quando esses outros têm tanta culpa como nós pelas circunstâncias que nos envolvem, então deixamos de ser inocentes e passamos a ser cúmplices.
António Avilar fez uma pausa. Enquanto os dois se mantinham calados, ouvindo o sussurro de muitos homens, que como eles se mantinham enlameados na trincheira portuguesa, ele ia trabalhando com as mãos, olhando para a mortalha que a pouco e pouco tomava a forma de um cigarro, vendo imagens já com oito anos de existência, acontecidas no Portugal longínquo... (pag. 49)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

4 comentários:

António disse...

E para quando em letra impressa?

Gibson Azevedo disse...

Se acaso tens condições de publicá-lo, não há porque perder tempo...
Vemos aqui, parte de um texto onde ressalta-se a riqueza do diálogo, que nos envolve naqueles montes de falares... Parabéns! Gostei.

Poeta do Penedo disse...

António

este é, até ao momento, o único dos que tenho escrito, que se encontra publicado, embora numa edição extremamente reduzida da C.M.Aveiro, em Novembro de 2001.

Acho que todos eles me merecem um pouco de consideração. Como tal esta é uma das maneiras de lhes aliviar o mofo.

Poeta do Penedo disse...

Gibson

Obrigado pelo simpático comentário. Se maomé não vai à montanha, que em Portugal o maomé da escrita é extremamente pesado, em respeito pelas personagens que se criam, leva-se a montanha ao maomé, que sempre é mais levezinha.