terça-feira, 10 de novembro de 2009

A AMETISTA



Sou uma pedra. Tal afirmação parece ser uma estupidez, mas não é. É que eu sou mesmo uma pedra! É claro que não sou uma pedra qualquer; nem tão pouco sou apenas uma pedra especial. Sou muito, mas muito mais do que isso. Começo por ser uma pedra semi-preciosa, mas não é a semi-preciosidade que me transmite este carácter tão peculiar. As pedras não têm o dom da memória e da comunicação; no entanto eu tenho memória, uma longa memória, e como se está a ver, consigo comunicar. Assim fossem todas as pedras e a história do mundo seria muito rica e completa. Se todas as pedras tivessem memória e pudessem comunicar as suas recordações, cada templo, cada monumento, transformar-se-iam num relato vivo das vidas humanas e dos acontecimentos importantes ou não, que se escondem na mudez das pedras de que são feitos os templos e os monumentos.
Eu tenho memória, e na minha textura, encerro a memória de um homem a quem eu acompanhei pela profundidade dos tempos. Esse homem foi a causa da minha existência; por tal razão o protegi.
Estou a escrever em português, mas a minha língua original é muito, muito diferente desta. É verdade, tenho também a capacidade de ser poliglota. Por tudo isto imagine-se o incomensurável poder do meu criador- conseguir dar vida e identidade a um elemento, ainda que semi-valioso, não passa, no entanto, de um elemento inerte.
Espreguiço-me de tanta inactividade. Fui criada há dez mil e cinquenta e nove estações, tendo passado a esmagadora maioria delas apenas observando. Bem, quando me refiro a inactividade, refiro-me à física, pois no que concerne à actividade mental e intelectual, tenho sido uma moira de trabalho. Observei, interpretei, interiorizei e compreendi todo o ambiente que me rodeia; por outras palavras, acrescentei ás memórias da minha própria identidade as recordações históricas que pertencem ao chão onde me depositei há dez mil e trinta e oito estações, ou seja, vinte e uma estações depois de ter sido criada.
A memória das minhas origens é fértil em beleza, capacidade criativa, inteligência, amizade, amor e magia; mas também tem o seu lado sórdido: a inveja, a cobiça e a maldade. E no meio de tudo isso, existem acontecimentos de que os homens de hoje em dia são sabedores, mas também existem os acontecimentos que tiveram lugar paralelamente aos anteriores, que apenas são substância na estrutura fria de mim própria; e são os acontecimentos, vizinhos dos que constam na história universal, que constituem a minha memória. E só em mim existem; escusam de os procurar nas vossas enciclopédias, porque lá não os encontram. Tal é a força do meu ser!

O primeiro momento destas minhas recordações, tem início precisamente há dez mil e cinquenta e nove estações, em plena estação de Peret, quando as águas do rio Nilo regressavam ao seu leito. Mais uma estação das cheias que terminava. Como sempre acontecia, era a época em que os «felas», nome dado aos camponeses do Egipto, iniciavam as sementeiras. As terras estavam moles pela saturação de água do rio Nilo, e impregnadas de sedimentos que o rio nelas depositara, tornando-as extremamente férteis. Era uma imensa azáfama. Os homens, de tronco nu, apenas envergando um saiote de linho, que lhes rodeava a cintura, curvados sobre a terra amiga, manuseando as suas alfaias. Eram milhares e milhares, que se iam distribuindo pelas margens do Nilo, rodeados sempre por exóticas palmeiras e tamareiras, próprias dos climas tropicais. Ali residia uma das grandes riquezas do Egipto- a sua agricultura.
É verdade, eu sou egípcia; é sobre o Egipto que vos quero falar, que convosco quero partilhar as recordações daquele meu país distante, geograficamente falando, mas muito mais distante no tempo...(em continuação, pág. 3)

in A CAUSA DE MASSIFTONRÁ

Novembro/2005

2 comentários:

Gibson Azevedo disse...

Caro amigo Fareleira Gomes, poucas são as pessoas que se importam com o ser(o existir) das pedras, e do relacionamento intimo , por vezes milenar, que estas têm com tudo e todos que as circundam, nestas batidas incansáveis dos tempos...
Muito boa, esta tua reflexão. Sou adepto destes pensares. Como já divaguei em outra oportunidade:

As pedras que rolam no leito,
São as mesmas que endurecem o peito
e são as que do mesmo jeito, rolam no eito...


Um grande abraço deste seu amigo de cá do oceano.
Gibson Azevedo.

Poeta do Penedo disse...

Caro Gibson
tenho um enorme respeito pelas pedras que dão forma a todos os monumentos. Ao olhar para elas, olho para o passado, que ali ganha forma, se materializa. As pedras que hoje nos fazem sombra, que hoje podemos segurar nas nossas mãos, já fizeram sombra e já foram pegadas por outras mãos muito anteriores às nossas, e que tal como nós, lhes sentiram a textura. Mãos daqueles que trabalharam par um futuro que é hoje o nosso presente. POr isso elas, as pedras, são tão importantes.
Esta, em particular, é considero-a fabulosa.

Um forte abraço deste seu amigo lusitano