quinta-feira, 5 de novembro de 2009

ENTRE LOBITO E AVEIRO SE CONTA UMA AMIZADE

...- Dos três filhos do meu irmão, o Narciso è o sobrinho por quem nutro menos simpatia, isso è certo. De certa forma a opinião que tenho dele vai de encontro à descrição que tu dele fizeste. Acho-o pouco simpático, muito exibicionista e demasiado convencido. Resumindo, deve muito à boa educação. Mas de forma alguma responsabilizo o meu irmão por isso. Aos seus três filhos ele deu, por igual, uma boa educação. Mas as pessoas não são todas iguais. Os filhos são uma fonte de alegrias, mas também podem criar grandes problemas aos pais.
- Onde estão os filhos da senhora?
- Eu não tive filhos meu caro jovem. Deus não me concedeu essa graça- disse a senhora tristemente.
- Foi pena, porque a senhora D. Silvina teria dado uma excelente mãe.
- Porque dizes isso? Tu não me conheces.
- Habituei-me a viver com um sexto sentido, que me informa sempre quem são as boas e as más pessoas. E para fazer essa distinção não preciso de muito tempo. A senhora è uma óptima pessoa.
D. Silvina sentada no sofá, com as mãos sobre as pernas, sorriu levemente. Quando ia falar, foi interrompida pela entrada do criado negro. Armando segurava um enorme tabuleiro, onde transportava um bule, duas chávenas e um prato repleto de convidativos bolos secos. Ao colocar o tabuleiro numa pequena mesa, feita também de pau preto, situada entre a patroa e Serôdio, D. Silvina disse:
- Sabes Armando, este jovem veio-me avisar de que o meu sobrinho Narciso se prepara para esta noite vir assaltar esta casa, na companhia de mais três rapazes.
- Senhora, isso não pode ser verdade.
- E porque não?- perguntou D. Silvina.
- Porque eu nunca conheci ninguém que fosse roubar a própria família.
- Isso não è razão para não dar crédito ao que este jovem veio cá dizer. Infelizmente há por ai muitos casos desses.
- O menino Narciso è mau, mas acho que não faz isso à tia dele.
- Porque è que tu dizes que ele è mau, Armando?
- Porque ele trata-me sem respeito nenhum, por eu ser preto.
- Eu nunca me apercebi disso- disse a senhora.
- Pois não, porque trata-me mal e chama-me nomes só quando a senhora está longe.
- Já me devias ter contado isso.
- E ir aborrecer a senhora? Nem sei porque è que eu disse isto agora.
- Come jovem- disse D. Silvina, dirigindo-se a Serôdio- está à tua vontade. Podes-me repetir o teu nome?
- Chamo-me Serôdio.
- Serôdio? È fora do vulgar.
- Sim, não se vêem muitos- respondeu o rapaz.
- Agora não sei que medidas hei-de eu tomar para prevenir a minha segurança, numa hipotética situação como essa.
- A senhora chama a policia- disse Armando.
- Policia? Não! Caso esta história esquisita se venha a tornar realidade, eu não posso fazer isso ao meu irmão. Mandar o seu filho para a prisão, Deus me livre.
- Eu compreendo- disse Serôdio depois de beber um pouco de chá e de já ter comido dois bolos- mas como se irá sentir o seu irmão se o Narciso vier a fazer algum mal à senhora?
- Antes de fazer mal à senhora ele tem de passar por mim. As catanas ainda...
- Armando, proíbo-te de teres pensamentos violentos. Se ele cá vier tudo se há-de resolver.
- Se a senhora D. Silvina não se importar, eu posso cá pernoitar. Ficamos os três acordados, com as luzes apagadas. Se eles entrarem, acendemos as luzes e recebêmo-los.
- E os teus pais não se importam que chegues tarde a casa?
- Eu telefono-lhes. Eles compreenderão. Estão habituados a confiarem em mim- respondeu o rapaz sorrindo.
- Então assim seja. Jantas cá em casa e conversamos um pouco. Se nada acontecer tanto melhor. Não haverá razões para preocupações, e eu com certeza terei encontrado um amigo.
- Já encontrou D. Silvina, já encontrou- disse Serôdio com um expressivo sorriso a inundar-lhe o rosto.






O pai de Serôdio não ficara nada satisfeito ao saber que o filho se encontrava quase na qualidade de guardião de uma viúva. Mas como também achou aquela história um perfeito disparate, sem o mínimo de credibilidade, não insistiu para que o filho se viesse embora. Se tinha cabimento um sobrinho ir assaltar a tia! Uma imaginação fértil por parte dos rapazes, bem ao jeito das histórias do Robin dos Bosques… e uma viúva, que por certo se sentiu seduzida pela ideia de ter um jovem rapaz a velar por ela, eis no fundo ao que ficava confinada aquela questão. Mas servia este assunto para demonstrar a nobreza de carácter que o seu filho Serôdio possuía. Sim, porque o seu filho Serôdio no fundo estava plenamente convencido de que na realidade existia um ladrão, que naquela noite iria atacar a casa da viúva, onde o seu filho corajosamente o aguardava. Deixá-lo viver aquela fantasia! Era inofensiva e fortalecia-lhe o ego.
Entretanto na casa « Lobito de Benguela» o jantar decorrera magnificamente. O criado negro, Armando, cozinhara um suculento frango de caril. Serôdio achara a comida fortemente apaladada, com sabor africano. Bebera quase duas garrafas grandes de gasosa. Depois do jantar, o rapaz e a senhora de preto instalaram-se na sala africana. Ao fim de algumas horas de convívio, ela considerava Serôdio como uma pessoa muita amiga. No fundo do seu intimo, nascia a vontade de o adoptar como seu filho, um filho que ela nunca pudera ter.
- A senhora D. Silvina tem esta sala deslumbrantemente decorada- disse Serôdio.
- Mas olha que a decoração não è minha- disse D. Silvina tratando o rapaz por um tu muito mais cordial e afectuoso- eu vivi muitos anos em África, mas sempre abominei a selvajaria. Acho pouco cristão caçarem-se os bichos por mero desporto. Mas fui-me habituando. O meu falecido marido adorava tudo isso. Para a Metrópole foi enviando os trofeus de caça que ele considerava serem os mais bonitos. Numa casa que tenho perto de Vagos encontram-se lá muitos mais. Esta casa onde estamos, foi toda desenhada por ele. E esta sala, que è o salão nobre, decorou-a ao seu inteiro gosto. Depois da sua morte eu não toquei em nada, respeitando assim a sua vontade.
- Viveram então muitos anos em África?!
- Sim, mais propriamente em Angola. Fizemos quase toda a nossa vida no Lobito, por isso o nome da nossa casa. Casámo-nos na igreja pequenina que se encontra ao lado do Museu de Santa Joana, em 1944. Eu tinha vinte anos de idade. O Raúl era mais velho do que eu dois anos. Nessa altura era alferes da Academia. Quando rebentou a guerra em Angola, em 1961, o Raúl tinha sido recentemente promovido a major. Ele foi mobilizado e eu quis ir com ele. O meu marido gostou tanto daquela terra, que pediu ao Estado Maior para lhe prolongarem a comissão de serviço. Por lá ficamos até ao vinte cinco de Abril. Durante esses anos, muitos carregamentos o meu marido enviou para aqui. Hoje temos um grande espólio africano, que em muito enriquece o nosso património.
- Na sua opinião, senhora D. Silvina, caso o seu sobrinho aqui venha mesmo, o que terá ele em mente? Algo desse espólio?
- Não, dinheiro, apenas dinheiro- respondeu a senhora- tenho ainda o mau hábito de guardar uma certa quantia em casa, e o meu sobrinho Narciso sabe perfeitamente que guardo esse dinheiro num cofre que se encontra embutido na parede, por detrás daquele quadro- e apontou para um enorme quadro, onde indígenas se espalhavam por uma savana de África, de lança em riste, na caça a um leão, que no meio deles, de juba alvoroçada, tentava escapar ao cerco que lhe era montado- reparaste Serôdio, com que naturalidade eu te revelei a existência do cofre?
- Realmente, eu nem sei que diga...
- Não digas nada. Isto è sintoma de que confio em ti...(em continuação- pág. 23)

in FILHOS POBRES DA REVOLTA

Março/2003

2 comentários:

Mari Amorim disse...

Poeta,
quero pedir te desculpas pela retribuição de tuas frequentes e queridas visitas,gostaria se possivel ,em uma breve visita deixe-me um email.Belo texto,muito reflexivo,a confiança,amizade não tem preço.
Boas energias,além mar
Mari

poeta do penedo disse...

Na realidade a amizade é um dos motores da vida. Amizades que se percam são vácuos na existência de cada um de nós.
Obrigado pela visita, amiga Mari.