quinta-feira, 30 de julho de 2009

ARMENTIÉRES ABRIL 1918

...- Ao entrar na casa vi o morgado com ar aterrado a observar-nos, a nós, um grupo de selvagens. Era jovem, pouco mais velho do que eu, naquela altura. Não o consegui olhar nos olhos. Meti-me por umas escadas que levavam ao primeiro andar. Outros homens, que como eu se sentiam enganados, acompanhavam-me. Todos íamos em silêncio. Por isso ouvíamos perfeitamente aqueles bandidos a atacarem o desgraçado do morgado.
- Tiveste pena dele?
- Imensa pena. A mim nunca me tinha prejudicado. Até tinha cara de bom homem. Mais tarde confirmei isso. Ajudava muito o povo de Alfeizerão.
- E então? Como ficou toda a história?
- O melhor está para vir meu caro Rouxinol. Depois de ter chegado ao primeiro andar entrei num quarto iluminado com uma candeia de azeite. Fui surpreendido com a presença de um bebé.
- Havia ali um bebé?
- Filho do morgado. Fiquei extremamente aflito. Temi pela segurança daquela criança. O Barreto Raposo e os dois ajudantes eram bem capazes de matar aquele inocente, só porque era herdeiro do morgado. Pus a minha cobardia para trás das costas e fiz por salvar aquela criança. Foi um momento de alegria. Começava a ficar bem comigo mesmo.
Ao dizer estas palavras, as lágrimas corriam envergonhadas pelo rosto de António Avilar.
- Chorar faz bem - disse o Rouxinol - quando temos o peito cheio de coisas ruins, as lágrimas trazem esses males cá para fora.
- É verdade amigo. A vida é estranha. Desde essa noite já se passaram oito anos e eu nunca tive oportunidade de falar nisto a ninguém. Havia o destino de ordenar que o fizesse numa trincheira, para um homem que eu mal conheço.
- Estás arrependido de me teres contado?
- Não caro amigo. Se desabafei contigo, é porque alguma coisa fez com que confiasse em ti. És bom rapaz e o contacto com a morte, o cheiro dela, acabou por desfazer esta parede que existia em mim.
- A mãe do bebé onde estava?
- Ainda hoje não sei quem é. Quando entrámos no solar não havia lá mulher nenhuma. Apenas o morgado e o bebé.
- Que fizeste com o bebé?
- O bebé era um menino. Consegui tirá-lo da casa sem que ninguém visse e atravessei a noite indo deixá-lo na minha casita, para que a minha Luísa tratasse dele. Eu tinha casado havia cerca de um ano. Ninguém desconfiou de nada, até porque eu e a minha mulher nunca fomos de muitos falatórios. A nossa vida já nos dava cuidados de sobra. Mas a partir desse momento, a minha vida modificou-se por completo. Tive de fugir à raiva do Barreto Raposo, por o ter abandonado. Ele teve medo que eu falasse. Mas a minha cara encher-se-ia de vergonha se o fizesse. E também não o fiz porque não estava interessado em ser preso.
- Preso? Mas porquê?
- O Barreto Raposo obrigou o infeliz do morgado a assinar um documento, pelo qual lhe vendia a herdade. Quando o Raposo se apanhou com o documento assinado, matou o morgado e o seu capataz. Os meus colegas daquela infeliz noite puseram-me ao corrente de tudo. O Raposo foi depois à Conservatória do Registo Predial de Alcobaça com o tal documento assinado e assim se fez dono da herdade. É claro que deve ter levado uma sacola bem recheada de moedas para ajudar ao negócio. O cantar de moedas sempre apressou as vontades. E ainda mais numa altura de confusão!
- E os dois mortos onde foram enterrados?
- Isso ninguém me soube dizer. Só aqueles malandros conhecem qual o chão que serve de sepultura àqueles homens.
- E os da herdade não reagiram?
- E como Rouxinol? Como? O Barreto Raposo apareceu em Alfeizerão com um ror de homens, mais aqueles dois abutres. Havia promessas de muito trabalho para os do Bombarral. Os tempos corriam para os mais assassinos. O povo de Alfeizerão deve ter aceitado com muita mágoa, mas que pode o bom do povo fazer contra uma mente poderosa e astuta? Olha, lá vivem todos. Já se passaram oito anos. O senhor da herdade é agora o Barreto Raposo. O pão vai saindo do forno, o povo vai comendo, longe da vista... longe do coração, e assim um crime deste tamanho fica sem castigo e o meu rico menino é dono do que lhe pertence, mas não tem.
- Mas afinal porque é que te alistaste?
- Alistei-me em 1915. Havia cinco anos que ia a casa às escondidas. Deixei de fazer vida normal com a minha Luísa. Tivemos uma menina. Nasceu em 1914. Ela mal me conhece. Então pensei: se havia de fazer vida de saltimbanco, que o fizesse com dignidade. Sou saltimbanco pelas cores da bandeira. Ganho orgulho, à força perdi o medo. Com tanto que já passei, estou finalmente preparado para enfrentar o Raposo e repor a verdade, nem que para isso vá ter à cadeia. Mas os campos de França deram-me a coragem que eu precisava para lutar pela minha honra.
- Estás então decidido a repores a verdade?
- Estou sim Rouxinol. A minha vida parou naquela noite. Para ela recomeçar a andar, eu tenho de tirar o maldito Raposo de dentro daquela casa. Tenho uma herdade para entregar ao menino que lá tenho em casa, já que ajudei a que lha roubassem.
- Como se chama o menino?
- Quando o tirei da casa do pai, ele deveria ter um anito. Com certeza que já teria nome. Mas como não houve ninguém que dissesse qual, pusémos-lhe o nome de Carlos Avilar. Também já devia ter sido baptizado. Mas Deus talvez não se importe que um dos seus filhos tenha dois baptismos. Connosco está há oito anos, deve pois ter nove anitos. É uma jóia de criança. Lá me chama de pai, e de mãe à minha Luísa. E realmente que somos nós para ele senão pais?
- És um homem às direitas. Deus te ajude na tua missão. O teu Carlitos um dia há-de sentir orgulho de ti... (pág. 52)

in QUANDO UM ANJO PECA

Março/1998

1 comentário:

António disse...

Poeta: vou (mesmo) ter de ler o livro.
Parabéns!