terça-feira, 26 de janeiro de 2010

ENTRADA PARA O DESCONHECIDO



- ... Quando eu e a minha mulher regressámos a casa, apenas encontrámos o nosso filho. A Catarina já se tinha ido embora. Ele estava possuído por uma angústia profunda.
- Sei bem o quanto essa angústia doeu senhor Victor. Disse o senhor que essa confraternização se passou três dias antes do embarque para Angola. Eu embarquei para África no mesmo dia e no mesmo navio que levou o Álvaro. Portanto, três dias antes, nesse mesmo dia, o meu estado de espírito era muito idêntico ao do seu filho. Sentíamos a nossa vida parar. Já no porto de Lisboa, quanta amargura não inundou aquelas pedras, amargura encerrada em cada lágrima que ali foi derramada pelas milhares de pessoas que ali afluíram. Choravam, os que partiam e os que ficavam. Que sensação estranha e vazia foi aquela que sentimos, quando o porto de embarque se vestiu de um branco ondulante, o branco dos lenços com que nos acenavam. Para muitos um último adeus. Para todos a fervorosa esperança no regresso. Ao entrarmos naquele imenso navio, o Vera Cruz, foi como se entrássemos por uma porta que ocultava o desconhecido. Entrámos num espaço sem horas nem dias. Ali não havia passado nem futuro. E o presente que vivíamos não era nosso. Era um presente emprestado, pois o nosso presente ficara aqui. Por essa razão a nossa vida parara. Éramos muitas centenas que ali estavam, sulcando as ondas de um Atlântico cada vez mais desconhecido...


... E em cerca de quinze dias o Vera Cruz transpôs a distância entre Lisboa e Luanda.
Bravos Lusitanos. Que destino o vosso. Fostes o apêndice mais avançado da história. Não tivessem os Portugueses de Quinhentos sonhado com um império, não estaríeis vós agora a chegar a Luanda.
De vermelho lusitano se tingiu muita da história sangrenta de África. Não deixeis, vós, bravos lusitanos, que Alcácer-Quibir faça parte das vossas vidas, porque há muito sol para ver, muito luar para apreciar, muito amor para amar, muitos filhos para nascerem, muito para dar a Portugal, muitos dias para se viver português.
Só Portugal é nosso...(em continuação- pág. 51- ex. XVIII)

in VISITADOS

Novembro/1999

2 comentários:

MM disse...

Caro Poeta do Penedo,

Na minha opinião, a nossa sociedade fala pouco dos Retornados. E eles são tantos e estão tão presentes no dia-a-dia.

Gerações como a minha desabrocham num Portugal que hoje virou o leme à modernidade e cosmopolitismo e que esquece o seu passado recente, caracterizado pela dificuldade e pelos obstáculos profundos.

Fala-se mais no êxodo campo-cidade do que no êxodo África-Portugal.

Depois, quando se vai ao encontro da essência que caracterize o português, é que esbarramos a sério nas consequências psicológicas e sociais que os retornados sofreram e que muito poderá explicar sobre o que somos e que tipo de vida e valores temos enquanto povo.

Respeitosamente,

Marcelo Melo
www.3vial.blogspot.com

Poeta do Penedo disse...

Caro Marcelo Melo
essa é uma verdade bem ligada ao nosso passado recente, como muito bem diz. Por força de uma descolonização atabalhoada, sofreram os retornados e sofremos nós que já cá estávamos, e que por via desse êxodo África- Portugal vimos as nossas vidas também dificultadas, pois que muitas oportunidades de emprego, de então, tiveram como alvo preferencial os retornados, o que provocou uma séria tensão social. Mas antes desse êxodo, houve o outro, o Portugal-África, pelo qual muitos milhares de jovens rapazes (os que refiro neste excerto), se viram na qualidade de combatentes, para muitos uma ida sem regresso, em que sofreram e morreram por uma terra que lhes disseram que era deles, mas que a experiência lhes ensinou que ali nada tinham, a não ser o depositário da sua juventude...e das suas vidas.
Com amizade.